segunda-feira, 20 de junho de 2011

Desfazendo Equívocos

Desfazendo Equívocos

A Inversão Epistêmica na Ontologia de Śrī Kṛṣna Caitanya

Swami Kṛṣnaprīyānanda Saraswati



GĪTĀ ĀŚRĀMA
2010-2011

Sri Prakasananda convida Sri Krsna Caitanya (imagem BBTI)

 "Há pelo menos dois tipos de conhecimento, o que nasce da simples apreensão sem nenhuma reflexão, baseado no crer, sem nenhuma investigação, e o conhecimento filosófico, baseado nas causas do perguntar racional. Ao primeiro tipo de conhecimento unem-se os que deixam os do segundo pensar por eles".

Swami Kṛṣṇaprīyānanda Saraswati

Entrevista

Maharaj, o Sr. Tem dito que o mahamantra hare rama hare krsna é cantando primeiro hare rama, depois hare krsna, e que Caitanya Mahaprabhu cantava nesta ordem. Ouvi dizer que no Caitanya Caritamrita está escrito que Ele inverteu o mantra para poder cantar diante dos muçulmanos.

O Kaliśantarana diz bem claro, Hare Rāma Hare Rāma Rāma Rāma Hare hare| Hare Kṛṣṇa Hare Kṛṣṇa Kṛṣna Kṛṣna Hare Hare, são estas as palavras que nos protegem do sofrimento na Kali-yuga. É só lê-lO. Mas o que isso de “inversão” tem a ver com Epistemologia ou Ontologia de Śrī Kṛṣṇa Caitanya? Como alguém pode achar que invertendo a estrofe de um mantra, como o Maha Mantra Hare Rāma Hare Kṛṣṇa irá mudar alguma coisa no sentido de “esconder” de alguém? Mahāprabhu não era um tolo, que achando que o ato de alguém se esconder debaixo de cobertas protege-o de algum inimigo. Não faz nenhum sentido isso. Mas se prestarmos bem a atenção, depois de um determinado tempo, e conforme uma tradição cante este mantra, não nos é mais possível saber se Ele inicia de um modo ou outro. Além do mais, Mahaprabhu não iria fazer algo que deformasse, modificasse a força e o conteúdo de alguma coisa indicada nas Escrituras, e muito menos que fosse contrário às ordens de Seu guru Īśvari Puri. Ele era fiel ao Seu guru e aos Śāstras. E o simples fato de mudar a ordem de recitação de algo não iria parecer diferente diante dos muçulmanos. É-nos bem claro que eles não são tolos ou meros personagens de contos de fadas; são povos inteligentes, estudiosos, e que nos legaram a filosofia grega através dos estudos de Filosofia, e nos trouxeram a Matemática e textos de Ontologia védica. Há outras infindáveis influências trazidas pelos árabes no meio védico. Portanto, é tola esta afirmação que inverter a ordem de recitar um mantra disfarçaria algo para os muçulmanos. A ordem dos fatores não altera seu produto. Um fator importante que alguém deverá levar em consideração é que nem sempre uma tradução é realmente uma tradução, podendo apenas ser uma mera interpretação; conter um punhado de ideologias. É como um livro de receitas de alguma marca de produtos de cozinha, obviamente, eles sempre têm o produto na empresa deles nas fórmulas do livro! O que devemos avaliar é a origem acadêmica do tradutor; sua formação em línguas e gramática, principalmente o sentido dos termos na época em que foram escritos, principalmente na exegese e na hermenêutica dos textos. Os acadêmicos védicos não aceitam interpretações pessoais das Escrituras, dizendo que são apenas apaurusheya sabda, ou seja, fala sem sentido. Por outro lado, é notável que as palavras mudam de sentido com o tempo, e isso não foi diferente com o Sânscrito, ou com o Bengali, nem é nem será com a nossa própria língua. Há uma infinidade de exemplos que se pode dar sobre o sentido de uma palavra. É também por isso que os textos clássicos foram todos escritos, numa época, em Sânscrito, tendo em vista manter o sentido étimo-filológico. As regras estão bem documentadas no Vedanga; mas mudanças de sentido e interpretação ocorrem. O guru será sempre necessário para elucidar erros de leitura e interpretação.
Por Sua vez, Sri Krsna Caitanya Bharati maharaj foi iniciado no maha mantra pela corrente discipular de Sri Madhavendra Puri, guru de Isvari Puri, ambos da linhagem Sankarite de Sradha Pitta Puri math, fundada por Sri Sankara no século VIII. E a tradição segue cantando o maha mantra conforme Ele aparece nas Escrituras, tendo como base o Kali Santarana Upanisad. No que depreendemos de informações do tipo que o senhor aqui nos passa é que são desprovidas de estudo adequado. 
Maharaj, alguns dizem que a “inversão” do maha mantra foi a forma que Mahaprabhu disse no ouvido de Kesava Bharati maharaj, na ocasião de ter recebido Sannyasa...

Ora, isso é "disse me disse". É necessário conhecermos a Filosofia e a Lógica para compreendermos o que se passou. Como poderia o discípulo dizer um mantra “ao contrário” e assim se tornar guru do seu guru? A história é outra. Mahaprabhu, um Ekadanda sannyasa, assim como a grande maioria dos seguidores da linhagem Sankarite, era perito em Filosofia e Lógica, principalmente tendo como base e fundo de investigação o Ser, Atma, na chamada Ontologia védica, a base da Ontologia até mesmo para os gregos, da antiga Grécia dos filósofos. Estes conheceram a  Ontologia muito proximamente dos filósofos védicos. Basta estudar um pouco de história da filosofia e perceber isso com facilidade. O problema que tínhamos era o fato de Sankara ter defendido que o Princípio da Não-contradição afirmava o Ser. Este Princípio afirma que, “o Ser não pode ser e não-ser ao mesmo tempo, mas mesmas circunstâncias”.  E a metafísica não permite que o Ser seja móvel ou dinâmico na sua forma fixa. Ou o Ser é, ou não é. Isso é simples de compreender. Mas filósofos anteriores a Sankara haviam dito que o Ser está além da imediatidade dos sentidos, e que o Jiva é também distinto e igual ao Parabrahman. Apesar da metafísica clássica, Sankara via um dinamismo no Atma, de modo muito semelhante a filosofia do Tantra Trika. Sankara é de tradição Tantra, como o Advaita Vedanta é de tradição tântrica nas Suas origens. Mas se o Ser é, como pode não-ser? No gita Krsna diz que Sat é imanifesto no começo, manifesto no meio, imanifesto no fim; portanto Atmah Satasat; é tanto vyakta (manifesto) como avyakta (imanifesto) – ver. Cap. 12 do Gita. De modo que no mundo vemos o Ser se transformando e permanecendo ao mesmo tempo. E quando o corpo morre, ou algo se desfaz, como um pote de barro que se quebra, por exemplo, o Ser (substância) permanece ainda que não manifesto no asat. Portanto, o Ser é sempre sendo ainda que se modificando, se transformando. Ele fica e passa no Seu ficar, e fica no Seu passar. Forma é acidente do Ser. Por conseguinte, conforme defendia Bhāskara Acharya, Caitanya fala para Keśava Bharati que o Ser não deve ser e não ser, sendo igual e diferente ao mesmo tempo, mas que pode ser diferente. Portanto, o mantra dito por Caitanya contém a ontologia da lógica, Sat-asat Bheda Abheda, conforme está bem claro no Narada Bhakti Sutras: tasṁins taj-jane bhedābhavat: “Não há diferenças entre o Senhor Supremo e Seu devoto puro” (NBS, 41). Esta inversão epistemológica de Sat e Asat converteu o coração dos filósofos Sankarites que não conseguiam vislumbrar além do Princípio da não-contradição rígido. 

Há um diálogo famoso entre Mahaprabhu e Sārvabhauna, o Baṭṭācārya que vivia em Jagannatha Puri. Baṭṭācārya tem o sentido literal de alguém “experiente nos rituais védicos”. Trata-se de uma antiga tradição dos Brahmanas Bengalis, considerados os mais elevados e eruditos dentro da sociedade na época. Os seus conhecimentos estão baseados, além de os Vedas, no Saktismo e na filosofia do Tantra, sendo que os Baṭṭācāryas são considerados Airyanos puros. Portanto, são portadores de grande respeito por todos os eruditos, devido justamente o conhecimento em Filosofia e Lógica. Por Sua vez, Mahaprabhu, um ex-professor proeminente de Nyaya e Ontologia, escutara atentamente o comentário do Acarya, sem dizer nenhuma palavra, no que Baṭṭacarya pensara que Ele era muito tolo. Mas no final, Mahaprahu expos um determinado verso que também aparece no Bhāgavatam (1.7.10), inteiramente de memória, mostrando as várias derivações e declinações do Sânscrito que o verso possuía. Conta a tradição, que o verso dizia o seguinte: 

ātmarāma ca munayo nigranthāpi urukrame|
kurvanty ahaitukīṁ bhaktiṁ ithaṁbhūta guṇo hariḥ ||

“As qualidades do Senhor Hari são o encanto dos ātmarāma-yogīs; de qualquer forma eles são nigranthas, ou seja, estão fora da influência da ilusão ou imposição dos śāstras; tornam-se contemplativos e estão atraídos pela mesma coisa; adorando Urukrāma Hari, com amor, e devoção, sem egoísmo”. 

Tendo escutado este verso no Bhāśya de Mahāprabhu, Baṭṭācārya rendeu-se aos Seus pés de lótus, desmaiando em puro êxtase, pelo amor ao Divino, removendo a especulação seca da lógica na qual havia ficado preso por muitos anos.

Agora vamos ver o sentido dos termos deste verso, que o leitor não filósofo não conhece: 

i) Ātmarāma-yogīs são aqueles filósofos que contemplam o Ser ou o Ātma com total devoção; são os Ontofilósofos, que regozijam o seus próprios seres no Espírito Supremo. No Nārada Bhakti sūtras está dito que: yajjñātva matto bhavati stabdho bhavati ātmārāmo bhavati:  “Aquele quem conhece Bhakti, serviço amoroso por Deus, fica impregnado de Prema, e torna-se feliz”. Isso quer dizer que os devotos têm em consideração que há tão somente o Ser e nada mais que o Ser; toda a manifestação é fruto do Ser e nada mais do que o Ser ou Ātma. “Rāma” aqui nesta palavra quer dizer “regozijo supremo; prazer supremo”. Para um ātmarāmin-yogī não há nenhum outro prazer do que mergulhar no Supremo amor do Absoluto; 

ii) O que significa “nigrantha”? Nigrantha trata-se não apenas de uma palavra, que no seu étimo quer dizer “abatedores; derrotadores”, como faziam os lógicos gramaticais da época de Mahaprabhu, por exemplo, derrotando os budistas nas suas nove teses sem lógica, nas quais firmavam sua filosofia agnóstica. Nigrantha são filósofos não budistas, porém jainistas, que defendem nove princípios afirmativos, os quais expressam que todos os objetos do conhecimento estão incluídos em nove categorias, a saber (não pretendemos ampliar o debate sobre isso neste pequeno texto): 1) A vida; 2) Contaminação; 3) Controle; 4) Persistência; 5) Ligação; 6) Atividade, ação ou karma; 7) Impureza (ato ignorante); 8) Mérito, e 9) Liberação ou Moksa. Segundo a escola Jaina Nigrantha, a liberação ou Moksa é alcançada através do asceticismo, por exemplo, no ato de andar nu, não falar, etc., até que o karma seja exaurido, e assim não criando novos karmas, então somente desta forma alcança-se Moksa, de outro modo retornando-se. Para os Jainas os Vedas são textos que se dedicam as forças da natureza (o mesmo que diz Krsna no Bhagavad-gita), mas o verdadeiro nigrantha é quem tem no Ser a afirmação da realidade ou Viveka, portanto; 

iii) o nigrantha yogī está fora da imposição (regras e regulações) contida nos śāstras. (mero ritual ou karma-kaṇda). O asceta centra-se mais do conteúdo (bhakti), em detrimento da forma (regras e normas positivas). Krsna nos deixou o verso 18.66 do B.gita que se resume em “sarva dharmam mam ekam”, ou seja, deixe as obrigações prescritas no manusmṛti (regras e regulações), e simplesmente renda-se a Mim, o Brahman Supremo (Śrī Kṛṣṇa), e,

iv) Urukrāma Hari, na verdade é Viṣṇu. o Senhor Viṣṇu é conhecido como “o de passos largos”, e é isso que a expressão quer dizer literalmente. Ele é também Śiva, quem caminha os três mundos apenas com um passo. Certa feita houve uma disputa entre Ganeśa e Skanda. Nārada Muni trouxe o fruto do conhecimento supremo chamado Phalguṇī (se diz palguní). Mas só tinha um, então ofereceu ao filho mais velho de Śiva. Porém nem Śiva nem Parvati sabiam quem era o mais velho; então foi dada a chance de que o que vencesse uma disputa, dando uma volta ao redor dos três mundos em menor tempo, receberia o fruto. Skanda montou em seu pavão real e saiu a viajar pelos três mundos, no que o Senhor Ganesha deu apenas uma volta ao redor de Śiva e Parvati, que estavam sentados. Narada Muni perguntou por que Ganesha não tinha saído, no que Este lhe disse, “Ao circuambular Mahadeva e Sakti fiz uma volta ao redor dos três mundos; Śambo é Urukrāma (com um passo circula pelos três mundos)”. Então Nārada Munī lhe deu o direito de receber o fruto do conhecimento. Portanto, o devoto centra-se em Hari, quem a passos largos desvela os três mundos, não precisando despender tempo além de Bhakti.

Como consequência da exposição clara e aberta do Princípio da Não contradição, feito de modo suave por Caitanya, todos os sábios eruditos em Gramática e Lógica, mesmo os da linhagem Advaita de Śrī Śaṅkarācārya, na qual Ele havia recebido a ordem de sannyasa, converteram-se à filosofia do acintya bheda-ābheda tattva, proferida no século IV por Bāskarācārya, e trazida no matiz de Mahāprabhu. Assim foi com Prakaśānanda Saraswāti mahārāj, o chefe dos Advaitas na ocasião em que Mahāprabhu demonstrou a inversão epistêmica do Princípio da Não contradição, introduzindo um operador “deôntico” (deve/não-deve) no lugar de um operador lógico rígido (pode/não-pode).

Swāmi Śivānanda mahārāja escreve que, “O Senhor Gaurāṇga converteu a todos os líderes do Advaita, e os cabeças Vaiṣṇavas que se encontravam sob a Sua congregação. Prakaśānanda, o Advaitācārya de Varanāsi, também foi convertido. Os ministros do rei de Gour também se converteram. Kazi, o governador, converteu-se. O rei de Orissa tornou-se um ardente e devotado discípulo de Gaurāṇga. Ele reconheceu no Senhor Caitanya um Avatāra do Senhor Kṛṣṇa”. Um a um dos grandes mestres autênticos da época de Śrī Kṛṣṇa Caitanya foram convertidos, tornando-se grandes devotos do Śrī Kṛṣṇa Caitanya Bharati. isso deu início a uma Sampradaya chamada “Gaudiya” que quer dizer “leveza”, porque deixou de lado a rigidez do Princípio duro da lógica do Ser e do não-ser.

Om hari hara om tat sat