Pramāṇa
Os meios do Conhecimento
Swami Atmananda Saraswati
Tradução, notas e comentários de
Swami Krsnapriyananda Saraswati
Gītā Āśrama
2012
Nota introdutória
É vasto o caminho no Advaita Vedānta, e a compreensão da sua filosofia é notavelmente complexa. Especialmente difícil é para o Ocidente a visão Oriental, cujos paradigmas são descentralizados de instituições e dogmas. Até o presente momento a cultura do Ocidente pensa por um lado analítico, pretendendo organizar o pensamento como se esse fosse possível um armário de arquivos ou coisa do gênero. Mas a dinâmica mental é mais complexa do que o determinismo fixista da metafísica, muitas vezes tão ingênua como a crença em coelhinho da páscoa e papai Noel. Seguindo os princípios da Lógica, quando algo nos é desconhecido deve-se buscar compreender as suas razoes. Mas o viés ethológico ou moral-racional do Ocidente, quase sempre tende a julgar a partir da sua própria visão ou idiossincrasia, não raro caindo num solipsismo cujo fundo de abismo é um niilismo cômico.
O Advaita Vedānta possui uma Teoria do Conhecimento ou Epistemologia Eidética muito avançada, tanto quanto a Matemática da Índia, onde conhecemos (e o quase tudo que conhecemos) é apenas uma pequena amostra da sua profundidade e amplitude. É notável que a visão xenofóbica e egocêntrica do Ocidente prefere desprezar o que não conhece do que curvar-se sobre a sabedoria não nascida na Europa grega. Felizmente, a História é algo possível de acessarmos através da pesquisa; ainda que o véu de crenças e convicções custe a cair diante das notáveis evidências das manipulações ideológicas (principalmente as de cunho religioso), a verdade ainda irá permanecer. Assim então, o leitor tem o convite de dar os primeiros passos na Teoria do Conhecimento do Advaita Vedanta, processo de conhecimento, aliás, milhares de anos das proposições cartesianas, senão ispiraram Descarte, pelo menos o deixaram intrigado. Também penso que este pequeno texto deixará claro que não há nada de místico, misterioso, oculto, ou algum tipo de truque de "espíritos" por detrás da metologia dos Vedas. De novo salientamos, sem a tradição o Sampradaya, todo o conhecimento é um mero 'achismo', porque não possui realização no Atma ou Ser.
Om tat sat
Krsnapriyananda Swami
Cada conhecimento requer “meios definidos” de informações, os quais são chamados de Pramāṇa (no Vedānta). A possibilidade de produção deste conhecimento certo depende apenas de termos utilizado os meios “adequados”. Se alguém deseja ver “formas e cores”, então o meio certo, o qual é aconselhado para isso, são os olhos. Os ouvidos são para os sons. Qual o meio que deveremos utilizar não é definido pela pessoa, mas pelo “objeto” do conhecimento. O conhecimento é chamado vastutantram. Os “vastus” ou objetos, “decidem”, e nós temos que tomar recurso de algum meio particular se desejamos conhecer o objeto. Recorrer a meios errôneos não nos trará o conhecimento do objeto. Se “eu desejo” ver uma estrela, então “eu” tenho que primeiramente conhecer qual é o meio para conhecer a estrela, para realizá-lo.
Para que o conhecimento seja realizado não importa realmente se você é sincero, entusiasta, empenha-se um pouco duramente, ou tenha um pouco de devoção, etc., o conhecimento simplesmente não irá estabelecer-se devido a estas qualidades. Com o devido respeito às boas virtudes, as quais nós as temos como regra, deve-se entender que aquelas não são Pramāṇas para o conhecimento, mas qualidades as quais preparam o buscador do conhecimento, assim, em si mesmos, elas não são suficientes. Se realmente formos sinceros, então o discernimento é um meio correto também. Quando pegamos o recurso de meios certos, e no exemplo dado, pegamos um telescópio e colocamos nossos olhos no lugar certo, focando o pensamento na direção certa, então, num determinado momento, seja o que você goste ou não, a estrela irá desvelar toda a sua glória. Portanto, antes de iniciar qualquer esforço para conhecer alguma coisa torna-se extremamente importante conhecer o meio exato de conhecimento o qual se aplica naquele contexto.
Os avanços no campo da instrumentação é uma ampla prova do fato exemplificado. No momento em que pegamos o meio correto, o conhecimento está por detrás. Os “objetos” do conhecimento ditam os termos para nós, e nós, sinceramente, olhamos para os meios certos. Para qualquer tipo de conhecimento estabelecer-se há três coisas, de fato, que são requeridas. A disponibilidade do “objeto” do conhecimento, o estado certo da mente do conhecedor, e o recurso de meios certos. Estes são chamados de Prameya, Pramātṛ ou Pramāta e Pramāṇa, respectivamente.
Veremos agora sobre o Pramāṇa
Os seis Pramāṇas
Qualquer conhecimento ou mesmo a existência de um objeto, toma lugar em nossas mentes. A mente torna-se consciente dos vários tipos de “objetos” através das várias “faculdades” disponíveis para isso. O fato de a mente ter várias faculdades a sua disposição mostra-nos que o conhecimento dos diferentes objetos apelam para o recurso de diferentes meios. É extremamente importante que tomemos o recurso dos meios certos, de outra forma, mesmo a existência de um objeto não será evidente para nós. Estes “meios de conhecimento” são chamados de Pramāṇas.
Antes de pularmos dentro do movimento das pessoas que querem saber “todas as diferentes facetas” desta bela benção chamada vida, é extremamente importante que nós, primeiramente, conheçamos quais são todas as faculdades ou então os meios do conhecimento que nós temos disponíveis.
Os professores da filosofia do Advaita Vedānta têm fornecido grandes detalhes sobre este aspecto de processo do conhecimento, enumerando “seis” Pramāṇas. Qual pramāṇa deve ser utilizado para, e também quando, decide-se pela situação e a natureza do objeto relacionado. Estes seis meios do conhecimento são, 1. Pratyakṣa (percepção); 2. Anumāna (inferência); 3. Upamāna (comparação); 4. Arthāpatti (postulação); 5 . Anupalabdhi (não-apreensão), e 6. Āgama ou Śabda (palavra autêntica). São estes os seis meios válidos do conhecimento, que estão disponíveis para nós, sendo que nós os usamos consciente ou inconscientemente no nosso dia a dia, para “conhecermos” as várias coisas as quais vêm no nosso caminho. É extremamente importante para nós entendermos cada um destes Pramāṇas apropriadamente, assim não iniciando o uso de um meio incorreto para conhecer um tipo de objeto em particular. Isso é, também, especialmente dirigido para quando nós estamos inquirindo sobre o Ser ou Ātma, o qual é, no final, a verdade transcendental, infinita, não-dual, referida como Brahman nos Upaniṣaḍs. O entendimento adequado dos Pramāṇas não apenas facilita o enfoque ou nossa energia devidamente, mas também culmina no alcançar e na realização do objetivo (do conhecimento sobre ele).
Vejamos cada um dos Pramāṇas antes mencionados:
1. Pratyakśa: percepção implica na cognição imediata ou direta. Há dois tipos de percepção direta, a externa e a interna. A percepção externa implica na cognição dos objetos dos sentidos, chamados: som, toque, forma, gosto e aroma, advindos através dos cinco órgãos dos sentidos (ouvidos, pele, olhos, língua e nariz). Quando os órgãos dos sentidos contatam seus respectivos objetos então o conhecimento Praktyaṣa toma o lugar. A percepção interna é o meio direto e imediato de cognição como dor, prazer, amor, ódio, ira, conhecimento ou ignorância dos vários objetos, etc., em e por nossa mente. Os Ācāryas (mestres do conhecimento) desvelam elaboradamente que, em qualquer percepção direta, a consciência existe no nível da mente da pessoa, que deseja conhecer um objeto, como se fluísse através do seu respectivo órgão do sentido e envolvendo a disponibilidade e ilustração do objeto. Esta consciência é, desde então, apresentada ao conhecedor na mente como um pensamento do objeto que, então, “conhecesse” o objeto. O processo inteiro é extremamente rápido e implica no envolvimento tanto da mente como do órgão do sentido em toda a percepção direta. Localizado em um lugar o conhecedor percebe, mesmo que distante dos objetos diretamente, desde que eles venham a alcançar os órgãos dos sentidos. A cognição imediata ou direta é uma característica intrínseca do conhecimento perceptual, e não meramente depende dos órgãos de percepção.
Todo o conhecimento de percepção direta é extremamente claro, mas seu escopo é muito limitado. O que nós podemos ver diretamente apenas se constitui num extremamente pequeno “j” no amplo espectro das coisas existentes neste universo; em muitos momentos, o conhecimento direto está longe de ser verdadeiro. Nós temos uma maravilhosa criação diante de nossos olhos, mas nós não vemos um criador diretamente; contudo, como não há um efeito sem uma causa, por conseguinte, lançamos mãos de algum outro meio válido de conhecimento para sabermos que um criador é inevitável. Assim, também, considerando as percepções internas, os pensamentos estão brotando de dentro de nossas mentes, mas não podemos ver diretamente a suas causas, as quais estão aqui de modo inevitável. Além do mais, nós vemos o nascimento do sol, mas supreendentemente nossa experiência interior desvela que jamais o sol nasce. A partir deste pequeno exemplo vemos que há a necessidade de outros meios de conhecimento válido;
2. Anumāna : a tradução literal de “anumāna” é “conhecimento após”. Ele é, sem dúvida, o método pelo qual o conhecimento é derivado de outro conhecimento. Ele é um conhecimento indireto e mediato. Nós temos conhecimento de uma invariável relação entre duas coisas, e em que base, enquanto vendo uma nós deduzimos a presença de outra. Assim, anumāna refere ao processo lógico de adquirir o conhecimento. O conhecimento que é desta forma adquirido é chamado de conhecimento inferencial ou dedução lógica. A palavra mais próxima de “anumāna” é inferência. Nós dizemos que é uma palavra mais próxima porque há uma delicada diferença entre o processo exato da dedução lógica no pensamento Oriental enquanto comparado com o sistema de dedução lógica Ocidental.
A percepção forma a base de anumāna, mas no cerne de todo o conhecimento inferencial descansa o conhecimento de “vyapti” ou “concomitância invariável”; a invariável relação entre os dois objetos. Nós sabemos que a base de nosso conhecimento perceptivo de que onde há fumaça há fogo (o oposto talvez não seja verdadeira). Tendo conhecido a conexão invariável entre as duas coisas nós poderemos deduzir logicamente a presença do fogo onde nós vemos fumaça. Isso é anumāna.
Em todo o conhecimento inferencial há passos definidos para seguir-se. Os seguintes passos são aceitos para a dedução lógica do conhecimento pelos mestres do Advaita Vedānta:
a) Evidência perceptual: nós vemos fumaça sobre uma montanha;
b) Concomitância invariável: onde há fumaça há fogo; como visto numa cozinha;
c) Conclusão: portanto, há fogo na montanha.
3. Upamāna : tanto os Mimamsakas como Advaitins, definem Upamana – analogia - como o processo pelo qual o conhecimento de A sendo similar a B, adquirido através da percepção de que B é semelhante a A, e o qual sendo visto em outro lugar. Esta metodologia é vista como distinta da mera inferência, e assim aceita como um meio válido de conhecimento. Por exemplo, uma pessoa que é vista com sua vaca , da sua casa, vai a floresta, e vê uma gavaya (uma vaca selvagem sem arreios). A pessoa vê que, semelhantemente, “esta gavaya é como minha vaca”, e sob esta base conclui que o oposto é igualmente verdadeiro, ou seja, “que minha vaca é como uma gavaya”. Deste modo, pelo upamana, ele adquire o conhecimento da semelhança entre sua vaca e a gavaya, através da percepção de que gavaya é semelhante a sua vaca.
Upamana é um meio distinto do conhecimento, e não pode ser batido sob anumana, porque nós não podemos ter uma proposição universal de que uma coisa é ou não semelhante. Tal conhecimento não pode ser adquirido sem a observação de duas coisas semelhantes juntas. Os Advaitins (seguidores do não-segundo ou não-dual; Advaita Vedānta), usam este método de conhecimento para comparação e semelhança, logicamente ligando a natureza de Brahman e as várias outras coisas. É dito que Brahman é resplandecente como o sol. Pela percepção da luminosidade do sol, o buscador pode apreciar o termo como autoluminosidade do Brahman.
4. Arthāpatti : este meio postula a suposição ou presunção de um fato. Ele é um método válido, distinto de conhecimento mediato. De fato, ele é um método de suposição de um fato desconhecido tendo em vista prestar conta a um fato conhecido que normalmente é inexplicável. O exemplo clássico deste método de conhecimento é, por exemplo, uma pessoa gorda “A” dizer que jamais come de dia; então nós facilmente supomos que ela coma a noite, pela simples razão de que sem esta suposição a sua gordura e também o adquirir de peso, não podem ser de outro modo explicado. Arthāpatti tanto pode ser do que se observa ou do que é ouvido. O uso deste método no Vedānta está no assumir a razão das implicações declaradas nos Upaniṣaḍs. Como na citação “O conhecedor do Ser – Ātma – transcende o sofrimento”. Aqui nós vemos que simplesmente o conhecimento destrói o sofrimento, então nós podemos presumir, sem quaisquer dúvidas, que todos os sofrimentos são falsos, e que podem ser destruídos meramente pelo conhecimento. Esta é, então, a suposição.
5. Anupalabdhi : os Advaitins e a escola Mimamsaka de Kumarila Bhatt, observam Anupalabdhi como um Pramāṇa independentemente distinto. Literalmente “anupalabdhi” significa, “não-apreensão”. A não-existência de uma coisa é compreendida por sua não-percepção. Por não ver um jarro num lugar alguém sabe que ele não está ali. Nós utilizamos este método de conhecimento, ademais, muito frequentemente, e isso fica evidente em enunciados como: “Não há professor na sala de aula”; “Não há barulho”; “Estas flores não têm perfume”, etc. Pode parecer paradoxal que a não-apreensão de uma coisa seja um meio para a apreensão de sua não-existência (abhava). Mas de fato, tanto a não-percepção bem como a percepção, servem como meios para conseguir vários conhecimentos, pela simples razão de que o conhecedor está ciente de ambas. Eles conduzem a experiências positivas e negativas. O conhecimento da não-existência de uma coisa pode ser a base do conhecimento direto ou indireto. Pode, também ser a base da nossa percepção imediata de uma cosia ou mesmo a base de inferência ou testemunho verbal. No antecedente, o conhecimento é imediato, enquanto que no caso posterior, o qual aplica-se aos objetos além dos sentidos, o conhecimento do abhava é de uma coisa mediata.
6. Āgama ou Śabda: palavra autêntica, é também conhecido como śabda-pramāṇa, traduzido como “testemunho verbal”. Āgama é por vezes chamado “āpta-vākya” (citação de uma pessoa respeitável). Uma citação verbal, dita ou escrita, é o meio mais potente para uma pessoa transmitir o conhecimento. No mais das vezes, nós aprendemos através das palavras. Uma mensagem oral ou escrita é um modo universal de comunicação. Constantemente nós adquirimos várias informações, instruções e conhecimento através das palavras. Desde os dias de escola até este momento, nós usamos palavras como meios válidos e efetivos de trazer à consciência as coisas, ideias ou emoções. Livros, revistas, jornais, cartas, conversas, discussões (pela internet), rádio, T.V., filmes, canções, etc., etc., todos usam ou dependem de palavras. Nós não podemos abrir mãos do testemunho verbal.
Um enunciado verbal, conduzindo um conhecimento válido, deverá ter uma origem autêntica, a qual deverá estar livre de defeitos. Apenas uma pessoa “competente”, possuidora do conhecimento, pode transmitir conhecimento preciso. Tal conhecimento não necessita de verificação, a menos, como se sabe, que haja uma dúvida sobre a sua confiabilidade. Se tudo o que conhecemos por testemunho verbal tivesse que aguardar confirmação, então a maior parte do conhecimento humano deverá ser considerado como sem fundamento. Entre os filósofos Ocidentais, apenas uns poucos reconhecem o “testemunho verbal” como um meio válido e independente de conhecimento, mas a maioria dos filósofos indianos aceita-o. Aqueles que não o aceitam como um método independente de conhecimento realizam a sua grande regra simplesmente agrupando-a junto com outros meios, como a inferência, etc. Por outro lado, o processo de conhecimento verbal não deverá ser agrupado com a inferência, uma vez que ele não envolve qualquer conhecimento de concomitância invariável, como no caso da inferência. Portanto, ele é uma categoria por si mesma. É interessante e também compensador, ir para dentro do processo exato de derivação do significado de uma sentença. De vez em quando, há um relacionamento substantivo/adjetivo entre o sujeito e o predicado da sentença o, e as vezes possivelmente não há tal relacionamento, mas uma entidade não-relacional pode formar seu locus (local em si). Tal entendimento torna-se importante quando ele advém da derivação da forma significado de sentenças como, “Tat Tvam Asi” (o que sois). Muito trabalho foi feito considerando a derivação do significado de uma sentença, especialmente pelos Mimamsakas. A combinação de palavras é chama de sentença apenas quando quatro fatores são considerados. São eles, a expectativa (akansa); consistência (yogyata); contiguidade (asatti), e conhecimento do objetivo (tatparya-jñānam). O entendimento de tudo isso facilita para nós a compreensão por que o testemunho verbal é um meio independente de conhecimento, muito diferente da inferência, etc.
Tendo conhecido estes “pramāṇas”, quando um qualificado “pramāta” (conhecedor) utiliza-se daqueles, e foca-se ao “prameya” (objeto do conhecimento), então “prama” ou conhecimento válido é instantaneamente ocasionado. Apenas o conhecimento ocasionado por qualquer meio de conhecimento é válido, não podendo ser e não ser dependente de verificação por outros meios, porque os outros meios não têm como alcança-lo. O conhecimento certo deve possuir indicações definidas e assim a validade dos meios confirma-se pela percepção daquelas indicações no pramāta. Assim, em vez de gastarmos o tempo tentando ver a forma de nosso nariz, deveremos em vez disso, abrir nossos olhos e realizar a intenção. Este é o único objetivo de entender os vários meios e métodos do conhecimento a nossa disposição.
nota: em alguns navegadores a vogal "a" com um traço em cima (duplo aa) aparece um quadrado.