Discriminação religiosa ou imaturidade na fé?
Swami Krishnapriyananda Saraswati
IGS BRASIL
GITA ASHRAMA
2008-2012
Hanuman realiza Bhajana (adoração) a Sri Visnu como Rama. |
“É preciso crer em Deus para ser salvo! Este dogma mal compreendido é o princípio de sanguinária intolerância e a causa de todas estas vãs instruções que golpeiam de morte a razão humana, acostumando-a a contentar-se com palavras”.
ROSSEAU, Emílio.
Religião e fé
O fenômeno religioso é universal e perene. Ainda que a palavra “religião” seja algo emprestado do Latin, o fenômeno religioso sempre esteve presente por entre os povos, seja de uma maneira ou de outra intuitiva, seja organizado ou não. Religião traz dentro de si uma preocupação com o transcendente, com a origem e o destino do indivíduo. CÍCERO dizia que “religião” é uma palavra que se deriva de “re-legere”, no sentido de “recolher”, “reler”, “aprofundar”, “internalizar”, “renovar”, etc. Há, também, a versão de ROUSSEAU, que dizia ser a religião um agrupamento da família, do grupo ou do estado. Este conceito provém da idéia de “religionário”. De fato, aqueles soldados romanos que pertenciam a uma decúria (dez soldados organizados num quadrado de dez por dez), e esta decúria a uma centúria (dez decúrias organizadas dez por dez) eram correligionários, ou seja, pertencentes do mesmo grupo ou legião, estando sob a orientação de um mesmo General.
De certo modo, quando falamos de “religião” falamos de “igreja” num sentido de grupo, de “eklesia”, ou “conexão” entre os simpatizantes. Mas ainda que a idéia geral de “religião” seja a de grupo, de comunhão de féis de uma determinada igreja, ela é um engajamento do próprio indivíduo em direção ao Supremo.
Peculiar a todas as religiões encontramos os mitos, seitas, dogmas, estamentos, regras e regulações de cunho moral, busca pela ascese, oração, ritos, etc. Estes ingredientes da fé são meios pelos quais se lança uma busca em direção ao transcendente; são apoios, acessórios culturais da fé. Através do estudo das origens e do desenvolvimento de uma religião podemos ver perfeitamente que ela se trata de um agente de cultura. Religião na cultura é uma expressão consciente de valores. Por conseguinte, toda a pessoa que segue uma fé religiosa é, em si mesma, um agente de cultura, principalmente daquela fé que segue e se engaja.
Observando os critérios em que toda a religião se fundamenta, vemos claramente que são os indivíduos os seus agentes. Portanto, poderemos dizer que a discriminação religiosa não surge de uma religião ou seita para com uma outra, mas de indivíduos contra indivíduos. Sendo uma coisa individual, e ainda que pareça coletiva num determinado período, observamos que a mudança de um líder religioso, numa determinada região, num determinado momento, oportuniza maior ou menos aversão religiosa entre as pessoas.
O mundo possui diferentes culturas, diferentes pessoas, por isso também possui diferentes religiões, e diferentes formas de relacionamento ou de buscas com o Supremo e o Transcendente. Ainda que se fale de diferentes nomes de Deus, Ele é único igual em todas as religiões. Então, perguntamos, “se todas as religiões falam do único e mesmo Deus, por que ocorre a discriminação religiosa?”
Tendo em vista o critério engajado do indivíduo numa determinada religião, podemos supor que os fatores principais da discriminação religiosa nascem de duas “faltas” ou carências de conhecimento apropriado, que em sânscrito é dito Avidya, ou ignorância. Estas duas ignorâncias, carências ou faltas são: a) falta de conhecimento verdadeiro da sua própria religião, e, por conseguinte desconhecimento do que diz uma outra religião diferente da sua; b) falta de autoconvicção na religião de escolha, e imaturidade na fé engajada.
O que faz alguém ingressar numa religião? Nas tradições culturais a religião é adquirida no momento do nascimento. Deste modo, a religião que deveria ser uma escolha pessoal é uma imposição prematura. Portanto, no mais das vezes, há uma identidade insofismável entre cultura e religião, e não estará errado dizer que a cultura sobrepõem-se a fé. De um modo essencialmente prático, alguém vai aprendendo sobre a sua religião naqueles valores os quais convive ao longo de sua vida, e que estão profundamente enraizados na sua cultura. A religião é um “modus vivendi”. Pode ser que aqueles valores se tornem irremovíveis devido à necessidade que o indivíduo tem de preservar a sua identidade, e a do seu grupo, no mundo, até porque o “mundo” é o seu grupo. Mas provavelmente serão poucos que irão conhecer a história da sua religião, entre estes poucos, talvez encontremos alguns sacerdotes, e neles a sabedoria de quais os motivos que levaram a fundação da sua religião, etc.
ROUSSEAU, em “Discurso Sobre a Desigualdade”, nos dá um belo exemplo de um governador holandês, no Cabo da Boa Esperança, na ocasião das Grandes Navegações, que pessoalmente empenhou-se em educar um nativo, desde a infância, nos padrões do cristianismo europeu, pretendendo torná-lo um cristão; vestindo-o e ensinando-o os valores do cristianismo. Então, ensinaram-lhe várias línguas, hábitos, costumes, e etc., da corte européia cristã, mas tão logo pode, o rapaz retornou a sua vida na tribo de onde saíra. Numa carta escrita para o seu tutor, o nativo escrevera: “Tende a bondade de reconhecer que renuncio para sempre estes ornamentos; renuncio também, para toda a vida, a religião cristã; minha resolução é viver e morrer na religião, nos costumes e nos usos de meus antepassados” (op.cit.p.112). aqui nos fica notável a identidade religiosa com a cultural.
Mas de onde surge, então, a discriminação religiosa? Suposto está que um desconhecimento das razões da própria religião, e de si mesmo com relação à fé, promove o disparate da discriminação. De modo equívoco, tal como uma competição esportiva, as religiões competem pela “taça da salvação”. Também, desrespeitar a cultura que subjaz na religião é o mesmo que fechar os olhos para a história de um povo e o seu ethos, ou estado de ser cultural, é ignorar o outro na sua forma de ser.
Por outro lado, se sabe que a idéia de grupo é forte em indivíduos imaturos. Isso a Psicologia não cansa de falar. Quando alguém não está suficientemente convicto de alguma coisa, da qual mais ou menos faz parte, ele vive em função de justificar a sua ação, para dela se convencer como legítima. E isso será pior se envolver a renúncia de alguma coisa pessoal, principalmente se esta renúncia envolver algo que lhe dá prazer. Também, junto com a idéia de grupo está a de instituição. Portanto, quando a religião se institucionaliza ela esbarra para o segregacionismo religionário, onde “somente o meu grupo é que vale”. Por detrás da instituição há uma tola idéia de força, de poder, de supremacia, de superioridade em relação aos demais. Isso é ocasionado pela fragilidade do homem diante das questões imanentes do mundo, e por sua insatisfação diante da finitude. Mas como a instituição é constituída de indivíduos, e estes indivíduos não são perenes, elas sofrem mudanças com o passar do tempo, e algumas deixam de existir junto com a morte de seus fundadores, num tempo mais ou menos longo. Também, as instituições, não raro, são grupos que surgem dentro das próprias religiões, e que ironicamente discriminam-se uns aos outros. As razões disso estão na imaturidade da fé dos agentes. A imaturidade na própria fé oportuniza o projetar no outro aquilo que não está suficientemente resolvido em si mesmo. A imaturidade na fé está fundamentada na ignorância da sua própria religião e de si mesmo como agente desta fé. Somente ocorre o amadurecimento da fé quando o indivíduo internaliza conscientemente, e de forma positiva, os aspectos construtivos da sua religião, e que lhe favoreça na pretendida “ligação” com Deus. De modo objetivo, colhe-se aquilo que se planta. Se plantarmos o ódio, colheremos o ódio. Se plantarmos o amor, colheremos o amor. A semente de amor por Deus deve ser regada com a força de vontade da maturidade da fé. Ao contrário das grandes religiões organizadas, a expressão da fé de um grupo cultural não irá discriminar a fé dos outros. A instituição é um local de centralização de poder, por isso, também pode segregar não oportunizando aos seus membros internos o acesso ao conhecimento devido.
A solução pacífica
Os Upanishads dizem, “Se educarmos as crianças, não precisaremos punir os homens”. A atual Constituição Federal brasileira assegura a liberdade de culto, e a Lei de Diretrizes e Bases de 20-12-96, no seu artigo 33, dá espaço para o Ensino Religioso, tendo em vista garantir “o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”. Por outro lado, observando a forma como os agentes da cultura são desde cedo eles mesmos ensinados, então, percebemos que os agentes da imaturidade da fé são transmitidos de “pai para filho”. A cultura de paz e de tolerância deve ser incentivada muito cedo. A Educação Para a Paz deve fazer parte do currículo escolar. Pensamos que nada mais apropriado para o amadurecimento da própria fé do que a convivência com pessoas de outras fés e culturas através de um diálogo aberto. Uma religião não é um time de futebol onde um time tem que ganhar e o outro perder. O despojamento do egoísmo somente ocorre quando nos permitimos a ele, diante da emergência do outro, da compreensão do seu mundo, e seu modo de estar. Também, o conhecimento próprio, dos limites e metas, faz parte do amadurecimento da própria fé. “Conhece-te a ti mesmo!”, já dizia a frase no Pórtico de Delphos na Grécia, onde Sócrates fundamentou sua maiêutica e hermenêutica. Nesta busca pelo autoconhecimento deve-se buscar os pontos comuns em todas as religiões.
Hans KÜNG diz que “Apesar de todas as diferenças de crença, de doutrina, e de ritos, também podemos perceber semelhanças, convergências e concordâncias. Não só porque em todas as culturas os homens se confrontam com as mesmas grandes questões – as questões primordiais sobre a origem e sobre o destino: o ´de onde´ e o ´para onde´ do mundo e do homem; sobre como superar o sofrimento e a culpa; sobre os padrões do viver e do agir; sobre o sentido da vida e da morte -, mas também porque nas diferentes culturas muitas vezes os homens obtêm de suas religiões respostas semelhantes. Na verdade, todas as religiões são também mensagem e caminho de salvação. Afinal de contas, todas elas transmitem, por meio da fé, uma visão da vida, uma atitude perante a vida, e uma norma para o bem-viver” (p.16).
Como o conhecimento da própria fé tem por base o conhecimento de si mesmo, da sua própria religião e a dos outros, a educação será o agente eficiente para terminarmos com a discriminação religiosa. A solução, sem dúvida pacífica, que a educação pode proporcionar, é um meio legítimo e adequado cuja eficácia será notável se for bem empregada. No Brasil existe a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas, desde as séries iniciais. Contudo, os agentes de educação não estão preparados na forma devida, pelos motivos que expusemos acima. A solução para o aprimoramento dos agentes de educação religiosa está na promoção de seminários e ciclos de debates, convivendo com representantes e membros das diversas religiões, em busca de pontos em comum. A mobilização no sentido de propagar a paz entre as pessoas no mundo deverá ser a meta primeira no ensino religioso. Como diz Küng, “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões”.
Hari Om Tat Sat
Referências bibliográficas.
ROSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
KÜNG, Hans. Religiões do Mundo. Em busca dos pontos comuns. São Paulo, Verus, 2004.
Folheto: Encontro de Ensino Religioso da Província. Assessoria do Frei Claudino Gils, Ordem Franciscana, 2004.
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