sábado, 22 de abril de 2017

A crise do pós-Iluminismo

A crise do pós-Iluminismo
Reflexões em um mundo pós-moral na pós-verdade

Olavo DeSimon - Swami Krsnapriyananda Saraswati




“Razão há, ainda que sem razão nenhuma”.

Outono 2017

A frase acima poderia ser de um filósofo famoso do passado, mas é um atrevimento meu, no presente. Poderia, também, adicionar a seguinte rima poética:

“Precisastes de outro
Para dizer que te amas?
Ora, ora!?
Amor nenhum, além de ti
Chora”.

Mas aqui falo de Filosofia, e por isso, considero que atualmente o mundo vive uma crise do pós-Iluminismo, ou a chamada “era da pós-verdade”; aquele, uma verdade irrefutável até então, mas ainda enraizada como tal, e que, talvez, devido a impossibilidade da sua realização, desde que pretendeu suprimir a moralidade objetiva em troca da irrealizável moralidade subjetiva, além da esfera particular ou, de outro modo, impor a moralidade subjetiva, particular, individual, idiossincrática, na esfera pública, nos colocou diante da nossa impossibilidade moral. O pós-iluminismo é a era do “eusimismo, do “eucomismo”, do “egoicismo”, onde até mesmo o egoísmo virou um “ismo”.

Por que crise do pós-Iluminismo? Porque este surgiu na ingenuidade do “Sapere aude”, a pedra angular da individualidade dando regras, assentada nos tempos áureos do século XVIII, fomentado principalmente por Immanuel KANT, incentivando alguém a “ter a coragem de apoderar-se de si mesmo”. Assim, o indivíduo deve pensar e agir conforme sua razão, mesmo que não tivesse nenhuma. Quem imaginaria que o “cogito ergo sum” cartesiano, iria gerar tantas dúvidas e insatisfações e, ainda por cima, cairia num romantismo político-social irrealizável: o pós-moral é a pós-verdade do Iluminismo em que vivemos.

O pós-moral da pós-verdade está aí, escancarado. O que afirmamos de manhã, desmentimos à noite. Mas que juízos temos na moralidade subjetiva, além de buscar atender o que temos certo como nossa moral? Estas, parecem expressões slogans, mas recorro à memória dos termos e trago o étimo ou o sentido que aqui gloso. Sugiro o entendimento de “subjetivo”, como sendo um atributo ou quem sabe um tributo, do próprio sujeito para consigo mesmo; aquilo que é pertinente e peculiar ao desejo e o fazer do próprio sujeito, não tanto como o id freudiano, impulso inconsciente e brutal, mas aquilo que é nato na cultura ou ethos em que a pessoa surgiu como tal, e, “objetivo”, como sendo o mundo vivido fora da sua “intimidade subjetiva”; algo além do si mesmo; além da idiossincrasia moral. O “objetivo” é o mundo das relações objetivais ou o local onde os objetos de vontades diferentes, e, às vezes, estranhas moralmente, se encontram; o local onde: “eu sou, além da minha subjetividade”; a esfera pública, ou, se preferirem, a massa organizada, seja política ou religiosamente, tudo isso constitui-se no mundo objetivo. Em síntese, o mundo objetivo é o mundo vivido socialmente
.
Alguém já disse que o homem é um ser DE cultura, mas me atrevo a dizer - também a mulher, é claro, para justificar o pós-moral da pós-verdade de hoje -, que o homem é um ser DA cultura. Há sim, uma diferença entre “de” e “da”; no primeiro caso, referimo-nos a quem tem um determinado grau de aculturamento - saiba ler, escrever, e compreender um texto -, já no segundo, pensamos como nos ensinaram a pensar. Sim, no mundo há dois tipos de pessoas, as que pensam e as que agem no pensamento daqueles. Poucos reagem. Ai de quem ousar dizer ou fazer diferente daquilo que foi tido como certo e irrefutável na “idiostasia” de alguém, portanto, o sapere aude é uma farsa. Penso não ser possível um homem sem cultura, assim como não é possível um homem sem ideias, contudo, há razões e razões diferentes. Entre todos, o conflito entre o subjetivo e o objetivo é permanente, tanto interno como externamente. E como diz H. Tristram ENGELHARDT, temos uma notável incapacidade de lidarmos com o estranho moral, e a moralidade subjetiva, particular de alguém, claro que é estranha na objetividade.

Eis então a tal crise da pós-verdade ou pós-moral do mundo atual, onde tudo tem que ser dividido, dicotomizado, classificado, catalogado, num quase maniqueísmo social ou “politicista”, focado no ideológico irrefletido (juízos de valores subjetivos, ou seja, pessoais e particulares); uma herança maldita na fé da liberdade incondicional e do progresso irrealizável do homem. A natureza biológica não tem como ser 100% superada pela cultura, apenas pode ser regulada. Aí brigam, onde em um momento algo é natural, e noutro, vontade pessoal. Então, sempre têm resposta para tudo, agindo tal qual um oráculo da antiguidade. A resposta fica de acordo com a vontade do egoicista.



Atualmente, não há espaço para o contraditório, para o falseável hipotético, e o discurso crítico passa a ser considerado tão violento quando uma agressão bélica a um opositor que pense diferente. Vivemos o “eusismo” ou “eucomismo”, o “egoicismo” militante, onde a crença particular de alguém (científica, religiosa e política) deve ser imposta aos outros na “marra”. Ainda que o discurso utilize palavras-chave como “ecumenismo”, “diversidade”, “pluralidade”, “tolerância”, “cidadania”, “inclusão”, e outros jargões do tipo “politicamente correto”, quem não concordar é “golpista”, “fascista”, “coxinha”, “esquerdopata”, etc. Por exemplo, falar em ideias de esquerda e direita ficou tão banal quanto dar tapas no vento; dar nós em pingo d’água. Quem não está engajado nas ideias que são pensadas e tidas como “politicamente corretas” está fora ou é contra, ou conspira para que não dê certo. Já nem se sabe o que é de um ou de outro axioma. Quem não está comigo está definitivamente contra mim. Afinal, falamos de que mesmo? Tudo está ponderado axiologicamente conforme o “eusismo”, ou seja, em valores subjetivos conforme “eu acho”. São jargões, slogans, frases de ações prontas e irrefletidas; vícios carcomidos de tão repetidos. Cansaram, mas estão aí em nome do “eucomismo”. A pós-verdade preconiza a volta às cavernas, mas com Iphone; facas de madeira com cabo de aço damasco; impor uma dieta vegana na base de liquidificador, caules, troncos e folhas. Ah! Santo liquidificador! É o modismo da “comida orgânica”, porque afinal, não comemos plástico, madeira e metal. Ops, ironia, é claro. Assim a religião dos dias de hoje virou uma mistura de “alimentação saudável”, com ets e seus discos voadores. Mas, no fundo, o pós-moral de hoje é de herança fascista e romântica, e contém um aspecto quase religioso e dogmático das ideologias: “quem não está comigo, está contra mim”. Já lemos e ouvimos isso várias vezes. Mas, de fato, vivemos a pós-verdade; o Iluminismo fracassou, mas deixou cicatrizes. Só transpuseram as coisas, ilustrando-as com frases de impacto de propaganda. No fim, a técnica consumiu e consumirá a todos, e vai continuar devorando-nos silenciosa e definitivamente, independente dos “ismos” que alguém defenda. Os robôs vencerão.

Quando a subjetividade, na sua singularidade privativa, pretende-se colocar acima da vontade coletiva, é óbvio que temos choques inevitáveis das vontades. Não há como realizar o sapere aude na plenitude militante do “eusismo”, porque desocupa-se dos chamados conflitos de interesses morais individuais que devem se adequar à vontade coletiva. A não ser que o coletivo seja uma ficção. No mundo não há como conciliarmos as infinitas vontades individuais, particulares, subjetivas, com a vontade coletiva, objetiva, se aquela singular não for “superada e guardada”, como propôs Georg Wilhelm Friedrich HEGEL. Não sou hegeliano, mas cito o fato por ele também ser iluminista. Se, se quer a liberdade, ao mesmo tempo, quer-se que alguém a controle, ou não? “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, já dizia José ORTEGA Y GASSET, e ninguém pode sentir a “minha” dor de dentes como eu. Sim já sabemos, as massas apenas lotam os espaços que criticam vazios, por isso, penso, que não conseguem preencher o vazio de suas existências; querem impor aos outros suas dietas, crendices e ideias mitômanas da tal “nova era”. Sim, na incrível insociável sociabilidade humana não há como ser feliz, apenas se alguém apoderar-se de si mesmo e ser condenado à liberdade idiossincrática, para não dizer idiota. O fatídico destino da subjetividade é nos condenar à liberdade irrealizável do eu comigo mesmo.
Nem ARISTÓTELES conseguiu definir a felicidade além do: “no mais das vezes”. A maioria das definições de felicidade que temos até aqui está além do singular. Então, como saberemos se há felicidade no indivíduo? É mais fácil condená-lo a ser feliz condenando-a à liberdade! Tudo impossibilidade.

Condenação à liberdade
Há quem coloque o movimento do século XVIII como sendo do embasamento científico, racional crítico, e uma forma de filosofar na recusa de dogmatismo, seja qual for. Mas na realidade, o Iluminismo surgiu como escape ou vazamento da incapacidade da sociedade em atender aos anseios individuais, frente a massificação inevitável, e o resultado prático da técnica como produto da Ciência. Sim, foi uma condenação. Mais ou menos como o fim da escravatura brasileira, onde os escravos receberam a notícia: agora vocês estão livres! Só que não. Sem ter onde morar, sem empregos, sem nada? Não houve preparo nem sequer a devida acolhida para o fim do comércio de escravos no Brasil. Engraçado que o escravagismo começou com o povo eslavo (daí advém a palavra “escravo”), loiros e de olhos azuis, e terminou na África dos pretos de tribos rivais enviando-os para cá. Há uma lei básica na Física: sem base não há impulso. Ação e reação são tão íntimas que não se dissociam. A sociedade humana segue sim as leis da Física, pelo menos reage aos fenômenos naturais que influenciam no agir na chamada “ação e reação”, apesar de tolamente quererem governá-la: “... terças-feiras fica proibido chover, é dia de caça à raposa”, dizia um rei... Condenar os indivíduos à liberdade e ao “vire-se por si mesmo” o que é o sapere aude na prática, foi uma forma bem prática de eximir-se de culpa e dolo moral objetivo e “lavar as mãos” aos sonhadores solipsistas da liberdade. Se cada um é por si, quem é por nós?

Deixe que o estado cuida de você, o resto é conspiração
Sobra-nos quem?? Conforme, bem antes do Iluminismo, nos dizia Thomas HOBBES: Leviatã! É isso? Sim, porque a vida do homem, afinal, é sempre “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”,[1] e o “homem é lobo do homem”, sem o poder absoluto do Estado não há civilidade. E os discursos pós-verdade ou pós-moral calcam-se na moralidade subjetiva como sendo a única forma de alcançar-se a liberdade, e, pasme-se, devendo ser regulado pelo Estado!? Se entendi direito, o pós-moral iluminista é um neo-hobbesianismo? E como a liberdade subjetiva não é alcançada nunca, logo advém o discurso do “princípio da conspiração”. Bem, mas vêm aquelas ideias rousseaunianas, ingênuas, poéticas , repetitivas e nauseantes (enjoadas na verdade) de “sociedade igualitária”, “direitos sociais”, “dívida histórica”, “desigualdade econômica”, e agora as tais “fobias”, que na realidade são ascos, e toda uma ladainha mítico-poética pós-iluminista neo-hobbesiana misturada com neo-rousseauniana, e que tentam justificar o fracasso Iluminista. Mas era só uma ideia!? Cuspir, urinar, defecar, jogar lixo pelas janelas, nas ruas, pretende ser um ato de protesto? O privado sai da privada e vai ao espaço público? Privatizar é sinônimo de “pôr na privada”? Isso é o fruto egoicista da era atual.
Enfim, por que alguém não consegue ser feliz? Porque tem alguém que não deixa, ou porque concentra o capital, ou porque explora o trabalho, ou porque é burguês, e o lero-lero verborreico da pós-verdade não para. Se alguém critica, é alienado, burguês, capitalista, e, ainda, fascista. Mas fascista não é a ordem e o progresso que garantem a liberdade? Estado soberano, povo feliz! Sim, era tudo mentira!

Referências Bibliográficas
HOBBES DE MALMESBURY, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Edição eletrônica. Pesquisa em 13/01/2017:
http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf
ORTEGA Y GASET, José. A Rebelião das Massas



[1] HOBBES (2017), p. 46.

terça-feira, 17 de abril de 2012

O Advaita Vedanta


O Advaita Vedanta
Swami Kṛṣṇaprīyānanda Saraswatī

SOCIEDADE INTERNACIONAL GITA DO BRASIL
SANATANA DHARMA BRASIL
GITA ASHRAMA
Porto Alegre, RS - Brasil
2006-2012




1. O Darshana do conhecimento dos Vedas
O "Darshana" ou "visão dos Vedas" chamado de "Vedanta" está originalmente ligado ao Mimansa. E este, por sua vez, tem grande influência do Nyaya, etc. A lógica, ou Nyaya, quando foi introduzida dentro dos estudos dos Vedas promoveu uma verdadeira revolução dentro do viés filosófico védico. Alguns princípios notáveis, como o da Não-Contradição, vieram a tona diante do grande conjunto de afirmações e da sobrevivência de falácias que não mais conseguiam se manter na luz da razão. Apesar do Vedanta ter uma origem muito anterior ao Senhor Buddha, ele ficou obscurecido durante a vigência áurea dos ensinamentos do Gautama. Alguns seguidores de Buddha criaram escolas niilistas muito parecidas com as escolas estóicas dos antigos Gregos. De fato, podemos dizer que o "período platônico" era vigente na Grécia quando o Senhor Buddha veio ao planeta. Durante o período em que o Buddha influenciou toda a Índia, removendo o povo da chamada tirania dos Brahmanas, sobreveio a maior onda materialista que a Índia já havia conhecido. Até meados do ano 800 da nossa era, o viés niilista e materialista dos budistas prevaleceu. Devemos dizer, contudo, que o Senhor Buddha foi fortemente influenciado pela filosofia Jainista, principalmente pela maneira como eles viam o Karma, e pela importância que dão a essa matéria.

2. Vedanta, uma antiga visão
Adi Sankaracharya
O Vedanta é anterior ao Senhor Buddha, mas reapareceu pela misericórdia de Sri Adi Sankaracharya (sec. VIII). Nesta ocasião auspiciosa, Sri Adi Sankar deparou-se com quase uma centena de seitas diversas, sendo que algumas pregavam o mais absoluto niilismo e materialismo. Karvaka, e outros, como alguns Kapalikas, tinham chegado ao fundo do poço da degeneração moral. Mesmo pelo espírito magnífico de Sankar, considerado uma encarnação de Sri Siva, o Senhor Supremo, notamos uma forte influência do pensamento vigente na época da Sua curta vida na Terra. O Vedanta, na sua origem, é Advaita Puro ou Kevala Advaita. Mas muitos acharyas que vieram depois de Sankar perceberam a Mishra que havia entre o niilismo dos Jainistas e Budistas, e a filosofia Advaita. Sem dúvida nenhuma, a influência, ainda assim, permaneceu. O fato do Senhor Buddha ter desqualificado os Vedas como textos puros do conhecimento motivou muitos a darem as suas próprias explicações sobre as coisas. Devemos entender que nesta fecunda ocasião histórica ainda temos alguns resquícios do xamanismo, ou interpretação do mundo segundo os fenômenos da natureza.

3. Sri Adi Sankaracharya, o precursor

Sri Krsna Caitanya
Claro que o Senhor Sankara foi o reiniciador da filosofia Advaita Vedanta no Planeta. Depois d´Ele vieram muitos, uns mais ou menos criticando ou apoiando alguns pontos. Na origem, o Vedanta é não-dual, ou seja, há somente um único e mesmo Brahman que a tudo permeia, e todo o demais é apenas um passatempo Seu. No aspecto triádico no qual todas as correntes se debatem, na filosofia do Vedanta, encontramos o Purusa ou Brahman, a Prakriti ou natureza material, e o Jiva ou Atman individual, e como se inter-relacionam. Sempre em torno destes três aspectos é que irá girar a discussão filosófica. Na filosofia do Dvaita ou Dualismo, encontramos muitas explicações para legitimar a variedade de Jivas, o mundo e seus acidentes (formas, cores, tamanhos, etc.). As explicações que Sri Madhava fornece, por exemplo, são muitas vezes nascidas nas explicações dos Jainistas (isso o leitor poderá ver com muita clareza ao estudar sobre esta filosofia jaina). Os Jainistas, como todos os seguidores dos aspectos atomistas do Nyaya e do Mimamsa, defendem que tudo é átomo, e que estes átomos estão espalhados por todos os lugares desde sempre. Por isso a matéria e eterna, apesar da sua aparente destruição. Dizem, por exemplo, que a única coisa que é permanente é a impermanência. Muito de estas ideais irão influenciar Madhava, a ponto de quase definir o Jiva (alma individual) como algo material, tendo tamanho e limite. Madhava, Nimbarka e outros Acharyas, irão defender as ideias com um cunho profundamente devocional. Às vezes, não sabemos quem é que está dizendo algo, se são os Jainistas, os Budistas, Madhava, Nimbarka, Ramanuja, ou outro Acharya, como Sri Adi Sankara, apesar de este criticar o atomisto restrito. Às vezes os debates são tão acirrados que não temos como saber quem está com a razão, nos restando conformar com o que está sendo dito. Contudo, como diz Swami Sivananda, “no final das contas tudo não passa da uma diferente visão de uma mesma coisa, porque o que prevalece é o puro Brahman”.

A introdução de Bhakti direcionada a um Ser Supremo como sendo Vishnu justifica-se no universo de Madhava. Kapalikas, e outros fanáticos, estavam propagando erroneamente o nome do Senhor Siva, com condutas imorais e que afrontavam diretamente as Escrituras. Neste período (época em que Sankara apareceu), muitos falsos Sivaistas pregavam o comunismo de tudo e de todos: mulheres, filhos, propriedades, etc., e diziam-se encarnações do próprio Senhor Siva. Pensamos que nos dias de hoje estejamos vivendo algo semelhante em nosso meio... digressões à parte, Madhavaacharya faz um misto de filosofia Jainista, Budista, e outros pensadores que mais ou menos seguiam o viés predominante da época.

hari om tat sat

terça-feira, 27 de março de 2012

HATHA YOGA

HATHA YOGA

Swami Kṛṣṇaprīyānanda Saraswatī

SOCIEDADE INTERNACIONAL GITA DO BRASIL
SANATANA DHARMA BRASIL
GITA ASHRAMA
Porto Alegre, RS - Brasil
2007-2012


Caro Swami Krsnapriyananda Saraswati, minhas reverências, por favor, me esclareça sobre a origem do Hatha-Yoga ... tem a ver com o Tantra e respectivamente os textos Ágamas? Falo sobre o Hatha-Yoga descritos nos textos Gheranda-Samhita, HathaYogaPradipik, Siva Samhita, Yoga Yjanavalkya, Yoga Chudamani Up. ... textos que sempre possuem capítulos sobre Samyama, nada tem a ver com essa coisa física contemporânea.

Deve-se fazer a devida separação didática para compreendermos a ciência do Yoga. Quase sempre, no Ocidente apressado, as informações são jogadas de modo não sistemático, o que permite um bom número de interpretações igualmente apressadas. Há seis Darshanas dentro do Sanatana Dharma, e o Yoga é um deles. os outros são, Vaishesika, a atomística; Naya, a lógica, Samkhya, a analítica, Mimamsa, ritualística, e o Vedanta, a teleologia (finalidade dos Vedas) védica (não confundir com teologia).

O Tantra trata-se, conforme dizem alguns autores, de um conhecimento anterior ao Veda. Em termos de filosofia, os seis Darshanas são, no mais das vezes, metafísicos, sendo que no Vedanta podemos encontrar traços de Dialética, e o Tantra é totalmente dialético.

Genericamente, com este nome "Ágamas" trata-se de um conjunto de escrituras, e estão presentes tanto no Hinduísmo, como no Budismo, e no Jainismo. No Sanatana Dharma, porque é a área que nos diz respeito, Ágama se trata de uma enorme coleção de textos em Sânscrito, e que, junto com os Vedas, por parte de alguns, são considerados Shruti ou seja, desvelações  divinas. Originalmente os Ágamas são o conhecimento e autoridade sobre a ciência do Yoga, bem como da construção de templos. Cada uma das denominações Hindus, a saber: Sivaistas, Vaishnavas, e Shaktistas, possuem seu texto Ágama único. Os Smartas reconhecem os Ágamas, mas os consideram Smriti, e não necessariamente aderem os textos.

Hatha Yoga
O sistema de Hatha Yoga (‘r’ata – como o som do “h” aspirado em “hot” em inglês; + yoga), também é conhecido como “Hatha Vidya”. Diz a tradição que este sistema foi introduzido por Sri Swatmarama, um Yogi do século XV, na Índia, que compilou o Hatha Yoga Pradipika, cuja origem nos é desconhecida. Este tratado de Yoga é uma espécie de memento sobre Asanas e assuntos relacionados ao Darshana do Yoga. Neste tratado, Swatmarana coloca a ciência do Hatha Yoga tendo em vista alcançar o Raja Yoga de Patañjali, e, ao mesmo tempo, purificar o corpo para adequá-lo à prática de elevada meditação. O Sadhana desta preparação é denominado de Shatkarma. Por definição, a palavra Hatha está composta de “rá” e “thá”, tendo o significado de Sol e Lua, respectivamente. A referência aos astros deve-se aos Nadis, ou canais de energia do corpo sutil, porque eles devem estar perfeitamente funcionais em plenitude para que seja possível alcançar o Samadhi, por meio do Dhyana ou meditação, ou seja, preparar para a união com o Supremo. No mais, o conteúdo do Hatha-yoga segue os princípios do Raja-yoga de Sri Patañjali, incluindo os preceitos morais como Yama e Niyama.

Origens do Hatha Yoga
Segundo a tradição, Sri Gorakhnath, um grande Yogi que viveu entre os séculos X e XI, sendo que Seus conhecimentos foram então agrupados no Hatha Yoga Pradipika, no trabalho de Swatamarama. O texto de Swatamarama, no entanto, não se trata de algo novo, porque se deriva de uma séria de outros textos sagrados escritos em Sânscrito. No texto Hatha-yoga Pradipika, também, observamos as experiências próprias do autor, além de muitas orientações que estão no Bhagavad-gita. 

O texto de Swatamarama é importante porque contém informações sobre Shatkarma, Asanas – as posições – Pranayama (no sentido respiratório), Chakras, Kundalini, Bhandhas, Kriyas, Shakti, Nadis, Mudras, entre outros tópicos diversos.

Sem dúvida, a grande influência de Sua Santidade Swami Sivandanda e Seus seguidores próximos, difundiram o Hatha Yoga de modo simples e descomplicado.

Conceitos importantes
Tradicionalmente o Hatha-yoga é um caminho amplo, por isso considerado holístico, porque contêm disciplina moral, exercícios físicos nas posturas dos Asanas, controle da respiração ou Swarayana. Apesar de que no Ocidente a grande maioria se dedica aos Asanas, Hatha Yoga é uma proposta ampla, e inclui profundo respeito e amor por Deus.

Por definição, se costuma dizer que o Hatha Yoga é um dos ramos que enfoca a participação do corpo no desenvolvimento eda pessoa. O outro ramo é o Raja Yoga. Tanto um como outro ramo salienta o Ashtanga Yoga, ou Yoga de oito partes. A diferença principal é que o Raja Yoga, contido nas orientações do Yoga Sutras de Patañjali, dá mais ênfase aos Asanas sentados para a prática de meditação, então temos neste sistema Asanas do tipo, Padmasana (posição de lótus), Siddhasana, pose perfeita; Sahajasana, pose fácil, e Vajrasana, ou pose pélvica. O Hatha Yoga, por outro lado, utiliza muitos outros Asanas, além de colocar o Pranayama como uma técnica respiratória, mas trata-se também de uma técnica de preparação para o Puja, sendo antes exclusiva de Brahmanas, e que não tem a respiração como foco principal, mas a limpeza dos 12 pontos do corpo para a preparação de adoração.

Hata e Raja
Como percebemos “sol” e “lua” tem um significado de polaridades, um represente o calor, e outro o frio; também de macho e fêmea, positivo e negativo, etc. A proposta do Hatha Yoga é então equilibrar estes pares de opostos, tendo em vista manter a mente firme na meditação e no relaxamento. De fato, o objetivo dos Asanas é tão somente preparar o indivíduo para o controle da mente, e assim ficar apto para alcançar o Samadhi no Dyana ou meditação. No decorrer da prática ou Sadhana o Yogi alcança a liberação.

O Yoga de Patañjali é composto de oito ramos, Yama e Niyama, os quais são deveres éticos; Asana, as posturas físicas; Pranayama, o controle da respiração; Pratyahara, tendo em vista recolher os sentidos; Dharana, a concentração; Dhyana, meditação, e o Samadhi, a unidade com Deus. Estes oito passos nomeados por Patañjali são melhor vistos como oito níveis do progresso no caminho do Yoga, cada um deles promove o beneficio para o seguinte, dando o fundamento em oito principais degraus para alcançar o Samadhi.
Alguns estudiosos não classificam o Hatha Yoga como sendo de oito passos, mas de seis, tendo em vista o despertar da Kundalini. Então, os seis passos são: Yama, Niyama, Asana, Pranayama, Mudra (gestos específicos na ajuda da respiração), Nadanusandhana (escutar os sons internos do corpo). Todo o processo culmina com o despertar da Kundalini. Devido a este enfoque, o Hatha Yoga é as vezes chamado de Kundalini Yoga.

Yama e Niyama de acordo com o Hatha Yoga
Yama trata-se de regras morais, ou regras de uma vida virtuosa. Dez dos Yamas estao em numerosas escrituras, incluindo no Hatha Yoga Pradipika.
Os dez Yamas tradicionais são:

1. Ahimsa: abster-se no mais possível de agredir ou danificar qualquer criatura viva, em pensamentos, palavras e feitos. Este é o Yama principal, e de certa forma, os seguintes são resultado deste primeiro;
2. Satya: veracidade em palavras e pensamento (na conformidade dos fatos);
3. Asteya: não roubar, não cobiças e não honrar as dividas;
4. Brahmacharya: conduta divina, continência, ser fiel.
5. Kshama: paciência, realizar o agora;
6. Dhriti: estabilidade, sobrepor a não-perseverança, o medo e a indecisão; contemplar cada tarefa.
7. Daya: compaixão, vencer a insensibilidade e o sentimento cruel para com os outros seres;
8. Arjava: honestidade, retidão, renunciar ao ilusório e à injustiça;
9. Mitahara: moderação do apetite, não comendo nem muito pouco nem em demasia; não consumir carne, peixes, frutos do mar, aves e ovos;
10. Shaucha: pureza, evitar as impurezas do corpo, mente e fala.

 Vendo os Yamas acima, vemos a ligeira diferença entre o Hatha Yoga e o Raja Yoga. Os cinco Yamas de Patañjali foram agrupados como regras morais, sendo eles? Ahimsa, Satya, Asteya, Brahmacharya, e Aparigraha; os cinco Niyamas, ou disciplinas pessoais incluem, Saucha, pureza; Samtosha, contentamento; Tapas, austeriade; Svadhyaya, estudo, e Ishvara-pranidhana, devoção ao Senhor.

Os Asanas do Hatha Yoga
Os Asanas mencionados no Hatha Yoga Pradipika têm em vista auxiliar e remover os bloqueios nos corpos: físico, sutil e causal. As posturas foram alcançadas por meio de meditação realizado por Yogis avançados. É dito que o desenvolvimento natural da Kundalini desperta o entendimento destas posturas ou movimentos, durante a meditação, também chamados de Kriya (atividades). No Yoga Sutras de Patañjali, os Asanas se encontram no terceiro degrau dos oito passos.

No ocidente, devido a natural deformação do entendimento filosófico, Hatha Yoga é conhecido como postura ou Asanas, em detrimento da sua profunda filosofia moral e ética.

Pranayama
O Pranayama quer dizer “controle do Prana”. Ele é praticado pelos sacerdotes antes de uma oferenda, sendo composto por vários procedimentos como aspergir água, Mudras ou gestos nos pontos do corpo tendo em vista purificá-los, e recitaçao de Mantras. Mas no Ocidente se popularizou chamar de pranayama os exercícios respiratórios (Swarayama). A palavra “prana” significa “força vital”, e Ayama, prolongar ou regular. Portanto, Pranayama tem em vista regular ou controlar a força vital Prana. Há duas formas importantes na respiração no que diz respeito ao controle respiratório: Rechak, exalação do ar, e Pural, inalação do ar. Também há o Kumbhak, que é a retenção que é feita dos dois estágios. O controle respiratório tem em vista alcançar o controle mental, bem como melhorar o desempenho físico. Nos primeiros momentos os exercícios são suaves e não requerem muito conhecimento, mas na medida em que se avança na ciência do controle do Prana é necessária a ajuda de alguém devidamente experiente. Os escritos advertem que uma prática sem a orientação do Guru ou mestre espiritual pode geral resultados como neurose, problemas adrenais, insanidade e até mesmo a morte.

Como praticar Asana Yoga
Alguns passos devem ser levados em consideração antes de iniciar uma prática de Yoga. Vamos listar abaixo, conforme orientação usual:
1. Beber um copo de água fresca antes de iniciar a prática de Asanas;
2. O estômago deverá estar vazio. Os Asanas devem ser realizados cerca de 8 horas depois das refeições; duas horas depois de um copo de leite, e uma hora depois de comer uma fruta;
3. é melhor realizar Asanas pela manhã, bem cedo. Outra hora é no entardecer;
4. Alimentos muito calóricos, secos, quentes, ou em demasia devem ser evitados;
5. Força e pressão não devem ser usadas na prática de Asanas;
6. Não se deve tomar banho frio depois dos Asanas;
7. A respiração deve ser controlada, e no mais das vezes ser realizada pelas narinas. Os benefícios dos Asanas aumentam com a prática do Pranayama.
8. Se o corpo está tenso, então deve realizar Shavasana;
9. Os Asanas devem ser realizados numa sala limpa e clara, bem como bem-ventilada. A atmosfera deverá ser pacífica;
10. Leves exercícios físicos (Asanas dinâmicos), devem anteceder os Yogasanas, Pranayamas e meditação; está é a seqüência recomendada;
11. Yogasanas, especialmente as invertidas, devem ser evitadas durante a menstruação;
12. Durante a gravidez, após os primeiros três meses, exercícios que pressionam o ventre devem ser evitados, bem como posturas invertidas, principalmente no terceiro semestre.

Conclusão
Hatha Yoga tem um grande valor no "reajuste" que se fazia necessário para o dualismo de Patañjali. A visão do Advaita Vedanta, apesar de no princípio parecer mais difícil de ser compreendida, é a que permite uma explicação para a unidade do todo, na Sua aparente diversidade. Quando Sri Patanjali propôs o Samadhi ele deixou o entendimento que o contemplador e o contemplado se tornam um só, mas apesar desta afirmação, há um contemplador e há um contemplado, portanto, há o Jiva e o Purusha sendo distintos um do outro e colocados frente a frente. O esforço de Patañjali de remover ao dualismo não foi suficiente, de modo que Swatmarana propõem um método muito mais dinâmico, e ao mesmo tempo centrado, para que o Yogi alcance a liberação. Apesar de conter menos aspectos de Bhakti do que o texto clássico do Raja Yoga, Hatha Yoga Pradipika contempla boas passagens que estão no Bhagavad-gita, principalmente as que se encontram no capítulo seis daquela obra magnífica. A confusão entre Hatha-yoga e Tantra pode ter nascido do fato de chamá-lo de Kundalini Yoga. Como é dada grande ênfase a Shakti no Tantra, então é provável que os conceitos possam ter se misturado. No entanto, Yoga e Tantra são escolas diferentes, às vezes até mesmo distintas. O primeiro grande aspecto que distinguimos ambas diz respeito ao Ser ou Atma. Enquanto no Yoga o Atma é perene, imóvel, intocável, no Tantra o Atma é algo dinâmico, que está sempre sendo. No Yoga, a filosofia tem um cunho metafísico forte, onde o indivíduo deve realizar o Ser passo a passo, mas no Tantra o Ser é dinâmico e a realização pode ocorrer imediatamente. Estranho que parece, as duas escolas se complementam, mesmo porque na atual era que vivemos, ou Kali-yuga, o tempo para realizar determinados passos está curto, e mesmo uma longa jornada em direção a realização parece não alcançar mais as expectativas daqueles que buscam alcançar o transcendente.

Que possamos todos ter as bênçãos do Guru na nossa caminhada, e que a Divina Kundalini nos dê bênçãos e Ananda.

Hari OM Tat Sat

terça-feira, 6 de março de 2012

Discriminação religiosa ou imaturidade na fé?

Discriminação religiosa ou imaturidade na fé?
Swami Krishnapriyananda Saraswati

IGS BRASIL
GITA ASHRAMA

2008-2012


Hanuman realiza Bhajana (adoração) a Sri Visnu como Rama.

                
“É preciso crer em Deus para ser salvo! Este dogma mal compreendido é o princípio de sanguinária intolerância e a causa de todas estas vãs instruções que golpeiam de morte a razão humana, acostumando-a a contentar-se com palavras”.
ROSSEAU, Emílio.

Religião e fé      
O fenômeno religioso é universal e perene. Ainda que a palavra “religião” seja algo emprestado do Latin, o fenômeno religioso sempre esteve presente por entre os povos, seja de uma maneira ou de outra intuitiva, seja organizado ou não. Religião traz dentro de si uma preocupação com o transcendente, com a origem e o destino do indivíduo. CÍCERO dizia que “religião” é uma palavra que se deriva de “re-legere”, no sentido de “recolher”, “reler”, “aprofundar”, “internalizar”, “renovar”, etc. Há, também, a versão de ROUSSEAU, que dizia ser a religião um agrupamento da família, do grupo ou do estado. Este conceito provém da idéia de “religionário”. De fato, aqueles soldados romanos que pertenciam a uma decúria (dez soldados organizados num quadrado de dez por dez), e esta decúria a uma centúria (dez decúrias organizadas dez por dez) eram correligionários, ou seja, pertencentes do mesmo grupo ou legião, estando sob a orientação de um mesmo General.

De certo modo, quando falamos de “religião” falamos de “igreja” num sentido de grupo, de “eklesia”, ou “conexão” entre os simpatizantes. Mas ainda que a idéia geral de “religião” seja a de grupo, de comunhão de féis de uma determinada igreja, ela é um engajamento do próprio indivíduo em direção ao Supremo.

Peculiar a todas as religiões encontramos os mitos, seitas, dogmas, estamentos, regras e regulações de cunho moral, busca pela ascese, oração, ritos, etc. Estes ingredientes da fé são meios pelos quais se lança uma busca em direção ao transcendente; são apoios, acessórios culturais da fé. Através do estudo das origens e do desenvolvimento de uma religião podemos ver perfeitamente que ela se trata de um agente de cultura. Religião na cultura é uma expressão consciente de valores. Por conseguinte, toda a pessoa que segue uma fé religiosa é, em si mesma, um agente de cultura, principalmente daquela fé que segue e se engaja.

Observando os critérios em que toda a religião se fundamenta, vemos claramente que são os indivíduos os seus agentes. Portanto, poderemos dizer que a discriminação religiosa não surge de uma religião ou seita para com uma outra, mas de indivíduos contra indivíduos. Sendo uma coisa individual, e ainda que pareça coletiva num determinado período, observamos que a mudança de um líder religioso, numa determinada região, num determinado momento, oportuniza maior ou menos aversão religiosa entre as pessoas.

O mundo possui diferentes culturas, diferentes pessoas, por isso também possui diferentes religiões, e diferentes formas de relacionamento ou de buscas com o Supremo e o Transcendente. Ainda que se fale de diferentes nomes de Deus, Ele é único igual em todas as religiões. Então, perguntamos, “se todas as religiões falam do único e mesmo Deus, por que ocorre a discriminação religiosa?”

Tendo em vista o critério engajado do indivíduo numa determinada religião, podemos supor que os fatores principais da discriminação religiosa nascem de duas “faltas” ou carências de conhecimento apropriado, que em sânscrito é dito Avidya, ou ignorância. Estas duas ignorâncias, carências ou faltas são: a) falta de conhecimento verdadeiro da sua própria religião, e, por conseguinte desconhecimento do que diz uma outra religião diferente da sua; b) falta de autoconvicção na religião de escolha, e imaturidade na fé engajada.

O que faz alguém ingressar numa religião? Nas tradições culturais a religião é adquirida no momento do nascimento. Deste modo, a religião que deveria ser uma escolha pessoal é uma imposição prematura. Portanto, no mais das vezes, há uma identidade insofismável entre cultura e religião, e não estará errado dizer que a cultura sobrepõem-se a fé. De um modo essencialmente prático, alguém vai aprendendo sobre a sua religião naqueles valores os quais convive ao longo de sua vida, e que estão profundamente enraizados na sua cultura. A religião é um “modus vivendi”. Pode ser que aqueles valores se tornem irremovíveis devido à necessidade que o indivíduo tem de preservar a sua identidade, e a do seu grupo, no mundo, até porque o “mundo” é o seu grupo. Mas provavelmente serão poucos que irão conhecer a história da sua religião, entre estes poucos, talvez encontremos alguns sacerdotes, e neles a sabedoria de quais os motivos que levaram a fundação da sua religião, etc.


ROUSSEAU, em “Discurso Sobre a Desigualdade”, nos dá um belo exemplo de um governador holandês, no Cabo da Boa Esperança, na ocasião das Grandes Navegações, que pessoalmente empenhou-se em educar um nativo, desde a infância, nos padrões do cristianismo europeu, pretendendo torná-lo um cristão; vestindo-o e ensinando-o os valores do cristianismo. Então, ensinaram-lhe várias línguas, hábitos, costumes, e etc., da corte européia cristã, mas tão logo pode, o rapaz retornou a sua vida na tribo de onde saíra. Numa carta escrita para o seu tutor, o nativo escrevera: “Tende a bondade de reconhecer que renuncio para sempre estes ornamentos; renuncio também, para toda a vida, a religião cristã; minha resolução é viver e morrer na religião, nos costumes e nos usos de meus antepassados” (op.cit.p.112). aqui nos fica notável a identidade religiosa com a cultural.

Mas de onde surge, então, a discriminação religiosa? Suposto está que um desconhecimento das razões da própria religião, e de si mesmo com relação à fé, promove o disparate da discriminação. De modo equívoco, tal como uma competição esportiva, as religiões competem pela “taça da salvação”. Também, desrespeitar a cultura que subjaz na religião é o mesmo que fechar os olhos para a história de um povo e o seu ethos, ou estado de ser cultural, é ignorar o outro na sua forma de ser.

Por outro lado, se sabe que a idéia de grupo é forte em indivíduos imaturos. Isso a Psicologia não cansa de falar. Quando alguém não está suficientemente convicto de alguma coisa, da qual mais ou menos faz parte, ele vive em função de justificar a sua ação, para dela se convencer como legítima. E isso será pior se envolver a renúncia de alguma coisa pessoal, principalmente se esta renúncia envolver algo que lhe dá prazer. Também, junto com a idéia de grupo está a de instituição. Portanto, quando a religião se institucionaliza ela esbarra para o segregacionismo religionário, onde “somente o meu grupo é que vale”. Por detrás da instituição há uma tola idéia de força, de poder, de supremacia, de superioridade em relação aos demais. Isso é ocasionado pela fragilidade do homem diante das questões imanentes do mundo, e por sua insatisfação diante da finitude. Mas como a instituição é constituída de indivíduos, e estes indivíduos não são perenes, elas sofrem mudanças com o passar do tempo, e algumas deixam de existir junto com a morte de seus fundadores, num tempo mais ou menos longo. Também, as instituições, não raro, são grupos que surgem dentro das próprias religiões, e que ironicamente discriminam-se uns aos outros. As razões disso estão na imaturidade da fé dos agentes. A imaturidade na própria fé oportuniza o projetar no outro aquilo que não está suficientemente resolvido em si mesmo. A imaturidade na fé está fundamentada na ignorância da sua própria religião e de si mesmo como agente desta fé. Somente ocorre o amadurecimento da fé quando o indivíduo internaliza conscientemente, e de forma positiva, os aspectos construtivos da sua religião, e que lhe favoreça na pretendida “ligação” com Deus. De modo objetivo, colhe-se aquilo que se planta. Se plantarmos o ódio, colheremos o ódio. Se plantarmos o amor, colheremos o amor. A semente de amor por Deus deve ser regada com a força de vontade da maturidade da fé. Ao contrário das grandes religiões organizadas, a expressão da fé de um grupo cultural não irá discriminar a fé dos outros. A instituição é um local de centralização de poder, por isso, também pode segregar não oportunizando aos seus membros internos o acesso ao conhecimento devido.

A solução pacífica
Os Upanishads dizem, “Se educarmos as crianças, não precisaremos punir os homens”. A atual Constituição Federal brasileira assegura a liberdade de culto, e a Lei de Diretrizes e Bases de 20-12-96, no seu artigo 33, dá espaço para o Ensino Religioso, tendo em vista garantir “o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”. Por outro lado, observando a forma como os agentes da cultura são desde cedo eles mesmos ensinados, então, percebemos que os agentes da imaturidade da fé são transmitidos de “pai para filho”. A cultura de paz e de tolerância deve ser incentivada muito cedo. A Educação Para a Paz deve fazer parte do currículo escolar. Pensamos que nada mais apropriado para o amadurecimento da própria fé do que a convivência com pessoas de outras fés e culturas através de um diálogo aberto. Uma religião não é um time de futebol onde um time tem que ganhar e o outro perder. O despojamento do egoísmo somente ocorre quando nos permitimos a ele, diante da emergência do outro, da compreensão do seu mundo, e seu modo de estar. Também, o conhecimento próprio, dos limites e metas, faz parte do amadurecimento da própria fé. “Conhece-te a ti mesmo!”, já dizia a frase no Pórtico de Delphos na Grécia, onde Sócrates fundamentou sua maiêutica e hermenêutica. Nesta busca pelo autoconhecimento deve-se buscar os pontos comuns em todas as religiões.

Hans KÜNG diz que “Apesar de todas as diferenças de crença, de doutrina, e de ritos, também podemos perceber semelhanças, convergências e concordâncias. Não só porque em todas as culturas os homens se confrontam com as mesmas grandes questões – as questões primordiais sobre a origem e sobre o destino: o ´de onde´  e o ´para onde´ do mundo e do homem; sobre como superar o sofrimento e a culpa; sobre os padrões do viver e do agir; sobre o sentido da vida e da morte -, mas também porque nas diferentes culturas muitas vezes os homens obtêm de suas religiões respostas semelhantes. Na verdade, todas as religiões são também mensagem e caminho de salvação. Afinal de contas, todas elas transmitem, por meio da fé, uma  visão da vida, uma atitude perante a vida, e uma norma para o bem-viver” (p.16).  

Como o conhecimento da própria fé tem por base o conhecimento de si mesmo, da sua própria religião e a dos outros, a educação será o agente eficiente para terminarmos com a discriminação religiosa. A solução, sem dúvida pacífica, que a educação pode proporcionar, é um meio legítimo e adequado cuja eficácia será notável se for bem empregada. No Brasil existe a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas, desde as séries iniciais. Contudo, os agentes de educação não estão preparados na forma devida, pelos motivos que expusemos acima. A solução para o aprimoramento dos agentes de educação religiosa está na promoção de seminários e ciclos de debates, convivendo com representantes e membros das diversas religiões, em busca de pontos em comum. A mobilização no sentido de propagar a paz entre as pessoas no mundo deverá ser a meta primeira no ensino religioso. Como diz Küng, “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões”.

Hari Om Tat Sat

Referências bibliográficas.
ROSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens. São Paulo, Nova Cultural, 1988.
KÜNG, Hans. Religiões do Mundo. Em busca dos pontos comuns. São Paulo, Verus, 2004.
Folheto: Encontro de Ensino Religioso da Província. Assessoria do Frei Claudino Gils, Ordem Franciscana, 2004.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O Vedānta

O Vedānta

Swāmi Kṛṣṇaprīyānanda Saraswatī

SOCIEDADE INTERNACIONAL GITA DO BRASIL
SANATANA DHARMA BRASIL
GITA ASHRAMA

Porto Alegre, RS - Brasil

 2006-2012


Adi Śaṅkara com discípulos (Dakśinamūrtī)


O Vedānta
A palavra e o instituto do Vedānta, do Sânscrito, “finalidade”, “conclusão”, refere-se aos Vedas (verdade; conhecimento), pois trata-se de Teleologia (finalidade; ou "para-quê") dos Vedas. De fato, Vedānta é o corolário dos seis Darshanas ou visões da filosofia do Sanātana-dharma, e tem seus fundamentos nos postulados dos Upaniṣaḍs. Ele deriva-se do Mimaṁsa. Swami Sivananda escreve que,

Vedānta é a culminação ou finalidade dos Vedas. Ele penetra dentro do estudo sobre Brahman. Ele é a ciência que ergue uma pessoa do plano mundano. Ele é um método racional de meditação no Supremo Absoluto, o Eterno, o Infinito. Vedānta é a culminação da experiência humana, e da finalidade da faculdade de pensar. Ele é um grande e elevado conhecimento. Sua sabedoria foi revelada pelos antigos sábios. Os Ṛśis ou sábios de outrora fizeram grandes experimentos transcendentais alcançados em meditação, trazendo ao mundo as suas experiências espirituais. Todos eles são autorizados. Você não deve gastar muito tempo fazendo estas experiências novamente. Toda a sua vida inteira não seria suficiente para experimentar e alcançar o que os sábios nos desvelam. As experiências dos sábios são como pílulas condensadas devidamente preparadas. Você simplesmente deverá seguir estas instruções sem restrições, com perfeita e inabalável fé e devoção. Somente assim você poderá fazer qualquer progresso no caminho espiritual e alcançar a meta da vida. Para praticar qualquer Sādhana, para alcançar a liberdade absoluta, você deverá conhecer e iniciar em si mesmo os seus métodos e técnicas. Você saberá a causa do cativeiro e o método de livrar-se deste cativeiro (do Karma). Você deverá fazer uma procura sobre o estudo da vida e conhecer os seus mistérios.”

(Swami Śivānanda, Vedānta para Principiantes)

Filosofia védica
A filosofia indiana, sem dúvida alguma, ganhou um grande impulso com o Vedānta de Śaṅkara. Esta escola de filosofia praticamente influenciou todas as demais que vieram após ela, mesmo àquelas que a contestaram. Por vezes, notamos que o Vedānta aparece como uma retomada de consciência dos Vedas, principalmente após a descaracterização feita por Buddha das Escrituras, tentando, por exemplo, suspender os sacrifícios injustificáveis que ocorriam como solução para todos os “problemas do mundo físico e espiritual”, principalmente os atos praticados pelos brahmanes, que também estavam cobrando “taxas” muito elevadas para prestarem seus serviços. Aqueles, cada vez faziam mais exigências, a ponto de que nem mesmo um rei não dispor de tamanha quantidade de produtos ou riquezas para poder resolver os “problemas divinos”. De fato, podemos considerar a posição de Buddha, principalmente por ter se dedicado a bem-fazer boas ações para as pessoas menos favorecidas, uma posição rebelde contra o “brahmanismo ortodoxo”; quer dizer, na medida em que descaracterizou os textos védicos, Buddha afirmou a necessidade de uma retomada de consciência diante das exigências absurdas dos brahmanas.

Śaṅkara, redescobrindo o Vedānta
O Vedānta, por sua vez, experimenta um forte renascimento com Śaṅkarācarya, onde são feitas comparações entre o Puruṣa (Ser), a Prakriti, e como se relacionam entre si. Śaṅkara, estimulado por Seu Guru, retoma a visão kevala ou pura do Vedānta. Cerca de 1.200 anos da influência do niilismo budista fez com que a Índia caísse num patamar de ignorância e misturas variáveis. Muitos, de forma ingênua, acreditavam que haveria necessidade de alguma ação para que se pudesse alcançar mokṣa ou liberação do saṁsāra (nascimentos e mortes repetitivos). Portanto, estes recomendavam e afirmavam o pravṛtti marga ou caminho da ação como indispensável para atender as exigências das Escrituras. Porém, Śaṅkara mostra com clareza que nivṛtti marga ou caminho da não-ação é o que está sendo recomendado nas Escrituras, e que a simples repetição ritual não é o suficiente para liberação alguém mas o conhecimento e a realização do ser ou Ātma. Śaṅkara fornece um reducionismo ontológico tendo como base o conhecimento ou jñāna. Conforme Śaṅkara, sem conhecimento e realização do ātma ou Ser não é possível alcançar a liberação ou mokṣa.

 Os corpos materiais
O Vedānta clássico defende a natureza material que envolve o ātma. O primeiro dos corpos humanos é o Annamaya kosha, ou seja, corpo grosseiro, resultado material dos alimentos, que corresponde ao corpo denso, o mundo da matéria densa, e ao plano da consciência chamada de vigília; o segundo corpo ou envoltório é chamado de Prāṇamaya kośa, corpo feito de Prāṇa, a energia vital; o terceiro corpo é Manomaya kosha, ou corpo mental, bem como os sentidos; o quarto corpo é Vijñanamaya kosha, corpo do “entendimento e da compreensão”, por fim, o quinto corpo é Anandamaya kosha, ou envoltório de bem-aventurança, e que corresponde ao estágio de sono profundo. De acordo com Śaṅkarācarya, no Vivekaśudamanī, (Jóia do Discernimento) o verdadeiro Eu está encoberto por estes cinco corpos, comparando a falta do brilho d’Ele, com um poço de junco, que não deixa vermos a água. Mas a remoção deste “junco” (ignorância) torna a água clara (o Ser) e visível, acalmando o tormento da sede e concedendo a felicidade em mais elevado grau.

Escolas Vedānta
A escola Vedānta é considerada ortodoxa, porque mantém os textos e os estudos védicos originais como base, e se se subdivide em cinco grupos principais, tendo cada um deles um representante fidedigno. A primeira e original escola do Vedānta foi mantida e defendida por Śaṅkara. Ela recebe o nome de Kevaladvaita (Advaita puro). A proposta fundamental desta escola é o monismo ou não dualismo, possuindo uma identidade absoluta entre o universo e Brahman. Mas defende que qualquer que seja a afirmação sobre a Verdade Absoluta é contraditória, adotando a filosofia do neti-neti (agnóstica) “isto não é”, como sendo a via mais segura sobre a questão do Absoluto. Posterior a Śaṅkara há diversas subescolas, quase todas influenciadas pelo romantismo judaico-cristão (inclusive islâmico). Outro grupo de Vedānta é chamado de Viśiṣtādvaita, tendo como fundador Sri Rāmanuja (1017-1276 d.n.e.). Nesta escola se ensina uma espécie de monismo relativo entre o universo e o Brahman. O Terceiro grupo ó o Dvaitādvaita, tendo por fundador Nimbarka, onde se admite um sincretismo entre o monismo e o dualismo. Fundado por Madhva (1199-1276 d.n.e.), temos o quarto grupo ou Dvaita, que ensina a existência de um dualismo entre o universo e Brahman, por fim temos o quinto grupo chamado de Suddhādvaita, fundada por Vallabha, que defende um monismo chamado realista e radical.


Suprassumo dos Vedas
O importante é que o Vedānta é um sistema aberto, onde o fundo de sua doutrina repousa na unidade indissolúvel do Ser Supremo ou Brahman. O Vedānta de Śaṅkar tem como base os Mahāvakyas, ou injunções finalísticas dos Vedas, ou seja, de asserções que se encontram dentro dos Upanishads. O mais importante dos Mahāvakyas é o grande mantra Tat Tvam Asi, que quer dizer “Vós sois Ele” ou “Tu és Isto”. Porque somente o Uno existe, sendo o mundo da diversidade fruto de Māya ou poder externo e ilusório do Absoluto, que nos faz crer em múltiplas diversidades, quando na realidade há somente um único Ser ou Ātman.

Hari OM Tat Sat