A crise do
pós-Iluminismo
Reflexões em
um mundo pós-moral na pós-verdade
Olavo
DeSimon - Swami Krsnapriyananda Saraswati
“Razão há,
ainda que sem razão nenhuma”.
Outono 2017
A frase
acima poderia ser de um filósofo famoso do passado, mas é um atrevimento meu, no
presente. Poderia, também, adicionar a seguinte rima poética:
“Precisastes de outro
Para dizer que te amas?
Ora, ora!?
Amor nenhum, além de ti
Chora”.
Mas aqui falo de Filosofia, e por isso, considero
que atualmente o mundo vive uma crise do pós-Iluminismo, ou a chamada “era da
pós-verdade”; aquele, uma verdade irrefutável até então, mas ainda enraizada
como tal, e que, talvez, devido a impossibilidade da sua realização, desde que pretendeu
suprimir a moralidade objetiva em troca da irrealizável moralidade subjetiva,
além da esfera particular ou, de outro modo, impor a moralidade subjetiva,
particular, individual, idiossincrática, na esfera pública, nos colocou diante
da nossa impossibilidade moral. O pós-iluminismo é a era do “eusimismo, do
“eucomismo”, do “egoicismo”, onde até mesmo o egoísmo virou um
“ismo”.
Por que
crise do pós-Iluminismo? Porque este surgiu na ingenuidade do “Sapere aude”,
a pedra angular da individualidade dando regras, assentada nos tempos áureos do
século XVIII, fomentado principalmente por Immanuel KANT, incentivando alguém a
“ter a coragem de apoderar-se de si mesmo”. Assim, o indivíduo deve pensar e
agir conforme sua razão, mesmo que não tivesse nenhuma. Quem imaginaria que o “cogito
ergo sum” cartesiano, iria gerar tantas dúvidas e insatisfações e, ainda
por cima, cairia num romantismo político-social irrealizável: o pós-moral é a
pós-verdade do Iluminismo em que vivemos.
O
pós-moral da pós-verdade está aí, escancarado. O que afirmamos de manhã,
desmentimos à noite. Mas que juízos temos na moralidade subjetiva, além de buscar
atender o que temos certo como nossa moral? Estas, parecem expressões slogans,
mas recorro à memória dos termos e trago o étimo ou o sentido que aqui gloso.
Sugiro o entendimento de “subjetivo”, como sendo um atributo ou quem
sabe um tributo, do próprio sujeito para consigo mesmo; aquilo que é pertinente
e peculiar ao desejo e o fazer do próprio sujeito, não tanto como o id
freudiano, impulso inconsciente e brutal, mas aquilo que é nato na cultura ou ethos
em que a pessoa surgiu como tal, e, “objetivo”, como sendo o mundo vivido fora
da sua “intimidade subjetiva”; algo além do si mesmo; além da idiossincrasia
moral. O “objetivo” é o mundo das relações objetivais ou o local onde os
objetos de vontades diferentes, e, às vezes, estranhas moralmente, se encontram;
o local onde: “eu sou, além da minha subjetividade”; a esfera pública,
ou, se preferirem, a massa organizada, seja política ou religiosamente, tudo
isso constitui-se no mundo objetivo. Em síntese, o mundo objetivo é o mundo
vivido socialmente
.
.
Alguém já
disse que o homem é um ser DE cultura, mas me atrevo a dizer - também a mulher,
é claro, para justificar o pós-moral da pós-verdade de hoje -, que o homem é um
ser DA cultura. Há sim, uma diferença entre “de” e “da”; no primeiro caso,
referimo-nos a quem tem um determinado grau de aculturamento - saiba ler,
escrever, e compreender um texto -, já no segundo, pensamos como nos ensinaram
a pensar. Sim, no mundo há dois tipos de pessoas, as que pensam e as que agem no
pensamento daqueles. Poucos reagem. Ai de quem ousar dizer ou fazer diferente
daquilo que foi tido como certo e irrefutável na “idiostasia” de alguém,
portanto, o sapere aude é uma farsa. Penso não ser possível um homem sem
cultura, assim como não é possível um homem sem ideias, contudo, há razões e
razões diferentes. Entre todos, o conflito entre o subjetivo e o objetivo
é permanente, tanto interno como externamente. E como diz H. Tristram ENGELHARDT,
temos uma notável incapacidade de lidarmos com o estranho moral, e a moralidade
subjetiva, particular de alguém, claro que é estranha na objetividade.
Eis então
a tal crise da pós-verdade ou pós-moral do mundo atual, onde tudo tem que ser
dividido, dicotomizado, classificado, catalogado, num quase maniqueísmo social
ou “politicista”, focado no ideológico irrefletido (juízos de valores subjetivos,
ou seja, pessoais e particulares); uma herança maldita na fé da liberdade
incondicional e do progresso irrealizável do homem. A natureza biológica não
tem como ser 100% superada pela cultura, apenas pode ser regulada. Aí brigam,
onde em um momento algo é natural, e noutro, vontade pessoal. Então, sempre têm
resposta para tudo, agindo tal qual um oráculo da antiguidade. A resposta fica
de acordo com a vontade do egoicista.
Atualmente, não há espaço para o contraditório, para o falseável hipotético, e o discurso crítico passa a ser considerado tão violento quando uma agressão bélica a um opositor que pense diferente. Vivemos o “eusismo” ou “eucomismo”, o “egoicismo” militante, onde a crença particular de alguém (científica, religiosa e política) deve ser imposta aos outros na “marra”. Ainda que o discurso utilize palavras-chave como “ecumenismo”, “diversidade”, “pluralidade”, “tolerância”, “cidadania”, “inclusão”, e outros jargões do tipo “politicamente correto”, quem não concordar é “golpista”, “fascista”, “coxinha”, “esquerdopata”, etc. Por exemplo, falar em ideias de esquerda e direita ficou tão banal quanto dar tapas no vento; dar nós em pingo d’água. Quem não está engajado nas ideias que são pensadas e tidas como “politicamente corretas” está fora ou é contra, ou conspira para que não dê certo. Já nem se sabe o que é de um ou de outro axioma. Quem não está comigo está definitivamente contra mim. Afinal, falamos de que mesmo? Tudo está ponderado axiologicamente conforme o “eusismo”, ou seja, em valores subjetivos conforme “eu acho”. São jargões, slogans, frases de ações prontas e irrefletidas; vícios carcomidos de tão repetidos. Cansaram, mas estão aí em nome do “eucomismo”. A pós-verdade preconiza a volta às cavernas, mas com Iphone; facas de madeira com cabo de aço damasco; impor uma dieta vegana na base de liquidificador, caules, troncos e folhas. Ah! Santo liquidificador! É o modismo da “comida orgânica”, porque afinal, não comemos plástico, madeira e metal. Ops, ironia, é claro. Assim a religião dos dias de hoje virou uma mistura de “alimentação saudável”, com ets e seus discos voadores. Mas, no fundo, o pós-moral de hoje é de herança fascista e romântica, e contém um aspecto quase religioso e dogmático das ideologias: “quem não está comigo, está contra mim”. Já lemos e ouvimos isso várias vezes. Mas, de fato, vivemos a pós-verdade; o Iluminismo fracassou, mas deixou cicatrizes. Só transpuseram as coisas, ilustrando-as com frases de impacto de propaganda. No fim, a técnica consumiu e consumirá a todos, e vai continuar devorando-nos silenciosa e definitivamente, independente dos “ismos” que alguém defenda. Os robôs vencerão.
Quando a
subjetividade, na sua singularidade privativa, pretende-se colocar acima da
vontade coletiva, é óbvio que temos choques inevitáveis das vontades. Não há
como realizar o sapere aude na plenitude militante do “eusismo”, porque
desocupa-se dos chamados conflitos de interesses morais individuais que devem se
adequar à vontade coletiva. A não ser que o coletivo seja uma ficção. No mundo não
há como conciliarmos as infinitas vontades individuais, particulares,
subjetivas, com a vontade coletiva, objetiva, se aquela singular não for
“superada e guardada”, como propôs Georg
Wilhelm Friedrich HEGEL. Não sou hegeliano, mas cito o fato por ele
também ser iluminista. Se, se quer a liberdade, ao mesmo tempo, quer-se que
alguém a controle, ou não? “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, já dizia José ORTEGA Y GASSET, e ninguém pode
sentir a “minha” dor de dentes como eu. Sim já sabemos, as massas apenas lotam
os espaços que criticam vazios, por isso, penso, que não conseguem preencher o
vazio de suas existências; querem impor aos outros suas dietas, crendices e ideias
mitômanas da tal “nova era”. Sim, na incrível insociável sociabilidade humana
não há como ser feliz, apenas se alguém apoderar-se de si mesmo e ser condenado
à liberdade idiossincrática, para não dizer idiota. O fatídico destino da
subjetividade é nos condenar à liberdade irrealizável do eu comigo mesmo.
Nem ARISTÓTELES
conseguiu definir a felicidade além do: “no mais das vezes”. A maioria das
definições de felicidade que temos até aqui está além do singular. Então, como
saberemos se há felicidade no indivíduo? É mais fácil condená-lo a ser feliz condenando-a
à liberdade! Tudo impossibilidade.
Condenação
à liberdade
Há quem
coloque o movimento do século XVIII como sendo do embasamento científico, racional
crítico, e uma forma de filosofar na recusa de dogmatismo, seja qual for. Mas
na realidade, o Iluminismo surgiu como escape ou vazamento da incapacidade da
sociedade em atender aos anseios individuais, frente a massificação inevitável,
e o resultado prático da técnica como produto da Ciência. Sim, foi uma
condenação. Mais ou menos como o fim da escravatura brasileira, onde os
escravos receberam a notícia: agora vocês estão livres! Só que não. Sem ter
onde morar, sem empregos, sem nada? Não houve preparo nem sequer a devida
acolhida para o fim do comércio de escravos no Brasil. Engraçado que o
escravagismo começou com o povo eslavo (daí advém a palavra “escravo”), loiros
e de olhos azuis, e terminou na África dos pretos de tribos rivais enviando-os
para cá. Há uma lei básica na Física: sem base não há impulso. Ação e reação
são tão íntimas que não se dissociam. A sociedade humana segue sim as leis da
Física, pelo menos reage aos fenômenos naturais que influenciam no agir na
chamada “ação e reação”, apesar de tolamente quererem governá-la: “... terças-feiras
fica proibido chover, é dia de caça à raposa”, dizia um rei... Condenar os
indivíduos à liberdade e ao “vire-se por si mesmo” o que é o sapere aude
na prática, foi uma forma bem prática de eximir-se de culpa e dolo moral
objetivo e “lavar as mãos” aos sonhadores solipsistas da liberdade. Se cada um
é por si, quem é por nós?
Deixe que
o estado cuida de você, o resto é conspiração
Sobra-nos
quem?? Conforme, bem antes do Iluminismo, nos dizia Thomas HOBBES: Leviatã! É
isso? Sim, porque a vida do homem, afinal, é sempre “solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta”,[1] e
o “homem é lobo do homem”, sem o poder absoluto do Estado não há civilidade. E
os discursos pós-verdade ou pós-moral calcam-se na moralidade subjetiva como
sendo a única forma de alcançar-se a liberdade, e, pasme-se, devendo ser
regulado pelo Estado!? Se entendi direito, o pós-moral iluminista é um
neo-hobbesianismo? E como a liberdade subjetiva não é alcançada nunca, logo
advém o discurso do “princípio da conspiração”. Bem, mas vêm aquelas ideias rousseaunianas,
ingênuas, poéticas , repetitivas e nauseantes (enjoadas na verdade) de “sociedade
igualitária”, “direitos sociais”, “dívida histórica”, “desigualdade econômica”,
e agora as tais “fobias”, que na realidade são ascos, e toda uma ladainha
mítico-poética pós-iluminista neo-hobbesiana misturada com neo-rousseauniana, e
que tentam justificar o fracasso Iluminista. Mas era só uma ideia!? Cuspir,
urinar, defecar, jogar lixo pelas janelas, nas ruas, pretende ser um ato de
protesto? O privado sai da privada e vai ao espaço público? Privatizar é
sinônimo de “pôr na privada”? Isso é o fruto egoicista da era atual.
Enfim, por
que alguém não consegue ser feliz? Porque tem alguém que não deixa, ou porque
concentra o capital, ou porque explora o trabalho, ou porque é burguês, e o
lero-lero verborreico da pós-verdade não para. Se alguém critica, é alienado,
burguês, capitalista, e, ainda, fascista. Mas fascista não é a ordem e o
progresso que garantem a liberdade? Estado soberano, povo feliz! Sim, era tudo
mentira!
Referências Bibliográficas
HOBBES DE
MALMESBURY, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado
Eclesiástico e Civil. Edição eletrônica. Pesquisa em 13/01/2017:
http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf
ORTEGA
Y GASET, José. A Rebelião das Massas